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Fábio Salzano, vice-coordenador do Programa de Transtornos Alimentares/Ambulim do IPq – Instituto de Psiquiatria da USP, fala sobre culto à magreza. Confira a entrevista na Revista Galileu

 

Culto ao emagrecimento é “tendência” novamente — e isso é um perigo

Culto ao emagrecimento é “tendência” novamente — e isso é um perigo Helô D’Angelo

Em 2014, a socialite estadunidense Kim Kardashian “quebrou” a internet com uma foto de seu voluptuoso bumbum. Publicada na capa da revista independente novaiorquina Paper, a repercussão da imagem clicada pelo francês Jean-Paul Goude surpreendeu até os donos da publicação. “No dia 13 de novembro, um dia depois de a matéria ser publicada, nosso tráfego correspondia a cerca de 1% de todas as atividades de pesquisa na web nos Estados Unidos”, escreveu um dos fundadores da revista, David Hershkovits, em artigo publicado no jornal britânico The Guardian em dezembro daquele ano.

Quase uma década depois, as curvas de Kardashian mais uma vez viraram assunto. Ou melhor, a redução drástica delas. Em maio de 2022, no aclamado evento MET Gala, em Nova York, a estrela de Keeping Up With the Kardashians declarou ter perdido cerca de sete quilos para caber em um vestido originalmente usado por Marilyn Monroe. E ela parece não ter parado por aí. Kim e sua irmã Khloe têm sido criticadas nas redes sociais por aparecerem cada dia mais magras, provocando especulações sobre o que estaria por trás de tamanha redução de medidas.

O uso de semaglutida virou tendência por causa das redes sociais, principalmente o TikTok: só nos últimos quatro meses, a hashtag #Ozempic teve mais de 520 milhões de visualizações na rede social, por usuários do mundo todo. Por meio de dancinhas e conteúdos típicos da plataforma, pessoas compartilham suas experiências com a medicação (as partes positivas, claro), impulsionando uma curva de crescimento de publicações sobre o tema que ganhou força a partir de dezembro passado. Embora a maioria das celebridades prefira negar ou omitir o uso do medicamento para emagrecer, algumas confessaram ter recorrido a ele. Entre elas, o bilionário sul-africano Elon Musk, dono do Twitter.

Profissionais de saúde estão em alerta máximo. “Se só os obesos usassem Ozempic seria ótimo. Mas hoje vemos pessoas magras, 6 que não precisam, usando o medicamento para perder ainda mais percentual de gordura”, observa a psicóloga Joana de Vilhena Novaes, coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza da PUC-Rio. “Isso se dá por conta da lógica mais ampla que regula e moraliza os corpos”, completa a especialista, que também é professora do programa de pós-graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida, no Rio de Janeiro.

Na prática, o uso indiscriminado de semaglutida é só a ponta aparente de uma questão muito mais profunda e preocupante que acompanha a sociedade há séculos: a obsessão pelo corpo e a atribuição de características morais à aparência. Mas que ganha contornos ainda mais complexos frente a outro problema que cresce cada vez mais no mundo moderno — a obesidade.

Epidemia de sobrepeso

Apesar do modismo, a semaglutida é considerada uma vitória tanto para o tratamento de diabetes tipo 2 quanto para o excesso de peso. A Organização Mundial da Saúde (OMS) define sobrepeso e obesidade como o acúmulo de gordura corporal que apresenta riscos, pois está relacionado a outras enfermidades, como as do coração, diabetes, hipertensão, doença do fígado, câncer, problemas renais, asma e dor nas articulações. Em termos técnicos, pessoas com Índice de Massa Corporal (IMC) acima de 25 têm sobrepeso e, acima de 30, são consideradas obesas. Passando de 50, o quadro é classificado como grave.

A prevalência de crianças e adolescentes de 5 a 19 anos com sobrepeso ou obesidade cresceu quatro vezes, de 4% para 16% — Foto: Helô D’Angelo

A prevalência de crianças e adolescentes de 5 a 19 anos com sobrepeso ou obesidade cresceu quatro vezes, de 4% para 16% — Foto: Helô D’Angelo

Esse cenário é realidade também no Brasil. Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde de 2020, mais da metade dos adultos brasileiros (60,3%) apresenta sobrepeso, e 25,9% são obesos. Um dos fatores para essa “epidemia” é cultural. Nas últimas décadas, nosso comportamento alimentar mudou diante da maior disponibilidade de produtos ultraprocessados – baratos, palatáveis e de fácil preparo, mas pouco nutritivos e altamente calóricos.

Mas há também causas biológicas. “Algumas pessoas são mais predispostas que outras. A população olha para a pessoa com obesidade e fala ‘como deixou chegar nesse ponto?’. Mas não é uma questão de escolha”, destaca a endocrinologista Maria Edna de Melo, médica assistente do Grupo de Obesidade e Síndrome Metabólica do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP) e chefe da Liga de Obesidade Infantil da Faculdade de Medicina da USP.

Injeção milagrosa?

Sintetizada para imitar o GLP-1 (Glucagon-like Peptide-1), hormônio da classe das incretinas produzido pelo intestino que regula os níveis de açúcar no sangue, a semaglutida foi um marco no tratamento para diabetes tipo 2. Pacientes com a doença têm resistência à ação da insulina, outra incretina que ajuda a regular os níveis de glicose no sangue. A consequência é o excesso de açúcar na corrente sanguínea, o que pode causar complicações vasculares e até mesmo cerebrais

Em 2012, a partir de pesquisas com incretinas conduzidas pelo endocrinologista canadense Daniel Drucker, uma das maiores referências mundiais no estudo de doenças hormonais como diabetes tipo 2, a farmacêutica dinamarquesa Novo Nordisk anunciou a semaglutida — uma modificação de substâncias prévias com ação mais duradoura e aplicada em injeções semanais.

Além de atuar no aumento da produção de insulina, a droga inibe a produção do glucagon, hormônio que aumenta a glicemia. O que ainda não é bem compreendido pela ciência é o motivo de a substância também ajudar a reduzir o apetite e, consequentemente, levar ao emagrecimento.

Se o processo ainda é um mistério, o efeito foi comprovado em um amplo ensaio clínico com semaglutida combinada a dieta de baixa caloria em adultos com sobrepeso e obesidade. O estudo mostrou uma redução de 16% no número da balança, contra 5,7% no grupo que ingeriu placebo. O trabalho foi publicado no respeitado The Journal of the American Medical Association (JAMA) e influenciou a Food and Drug Administration (FDA), a “Anvisa” dos EUA, a aprovar em junho de 2021 a medicação para o tratamento de obesidade e sobrepeso.

Embora pareça uma bala de prata, a endocrinologista da USP alerta que não é qualquer pessoa que tenha IMC acima de 27 (como recomendado pela FDA) que precisa ou pode fazer uso da semaglutida. “Nem todo mundo com sobrepeso tem doença associada. Muitas vezes, pode ser uma inadequação usar o medicamento; só rever a alimentação e ajustar a atividade física podem já ser medidas suficientes”, alerta Maria Edna de Melo.

Ainda que seja considerada segura, a semaglutida tem efeitos adversos, que incluem dor de cabeça, fadiga, tontura, inchaço, flatulência excessiva, gastroenterite e refluxo gastroesofágico. Mas a principal preocupação é com o uso indiscriminado, influenciado pelas redes sociais, que pode causar a falta da medicação para quem realmente precisa.

“No mundo neoliberal, gordura e velhice se tornaram as representações máximas de feiúra e transgressão moral, de sujeitos improdutivos”
— Joana de Vilhena Novaes, coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza da PUC-Rio

No Brasil, onde a semaglutida é vendida sem necessidade de receita e a versão voltada para perda de peso (Wegovy) ainda não está disponível nas farmácias (embora tenha sido aprovada pela Anvisa), houve problemas no abastecimento da versão para diabetes tipo 2 (Ozempic) no primeiro trimestre de 2023. O motivo, você já deve imaginar, é porque a droga virou “tendência” por aqui também.

Moralização da beleza

A obsessão pela imagem corporal não é recente, ainda que os padrões mudem e se transformem ao longo do tempo. “O corpo e os ideais estéticos são sempre uma questão de classe, atravessada por jogos de poder. Ela não é para todos”, pontua Vilhena.

E as definições do que é considerado belo ou padrão acompanham as mudanças sociais de cada período. O exemplo mais clássico é o do corpo curvilíneo renascentista, que hoje poderia ser considerado gordo, mas na época era símbolo de status por ser possível apenas para uma pequena parcela da população que tinha amplo acesso a alimentos.

A magreza virou padrão de beleza entre o final do século 19 e início do século 20 — Foto: Helô D’Angelo

A magreza virou padrão de beleza entre o final do século 19 e início do século 20 — Foto: Helô D’Angelo

magreza virou padrão de beleza entre o final do século 19 e início do século 20, quando tanto a medicina quanto a indústria da moda criaram o ambiente ideal para que ela ganhasse força: de um lado, passou-se a associar o corpo magro a saúde; de outro, o universo da costura e o surgimento do prêt-à-porter, com suas roupas já prontas, obrigaram as mulheres a entrarem em vestidos cada vez menores.

No mundo contemporâneo, a novidade não é apenas ter um ideal estético bem definido, mas associá-lo a valores morais. O fenômeno definido pelo filósofo e sociólogo francês Jean Baudrillard como “moralização da beleza” trouxe uma associação inédita entre saúde e aparência — e quanto mais magra, melhor.

“Se ser bonito antes era um direito, agora virou um dever. Passamos a relacionar caráter a atributos estéticos. E, no mundo neoliberal, gordura e velhice se tornaram as representações máximas de feiúra e transgressão moral, de sujeitos improdutivos”, avalia Joana de Vilhena Novaes, que continua: “Nós somos mercadorias: consumimos o corpo alheio e colocamos nosso corpo para ser consumido. E não precisamos mais de algo externo nos dizendo qual corpo devemos desejar, daí o sentimento de insuficiência.”

A que custo?

Na busca pela magreza tida como saudável, muitas pessoas adoecem. Os principais transtornos alimentares reconhecidos pela psiquiatria são: anorexia nervosa, bulimia nervosa, compulsão alimentar e transtorno alimentar recidivo evitativo. Os dois últimos não têm relação direta com questões corporais; na compulsão, o indivíduo apresenta episódios não acompanhados de medidas restritivas, e no transtorno alimentar restritivo evitativo as dificuldades são específicas, relacionadas a texturas, consistências e cor dos alimentos.

Mas tanto a anorexia quanto a bulimia são caracterizadas pelo desejo de emagrecer. “O mais preocupante é a anorexia, pois tem a maior mortalidade quando não tratada”, destaca o psiquiatra Fábio Salzano, vice-coordenador do Programa de Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria da USP (IPq-USP). Segundo ele, o índice de mortalidade por essa condição pode chegar a 10% dos casos. Pessoas anoréxicas nunca se sentem satisfeitas com seu peso e sempre almejam níveis ainda menores.

Mas tanto a anorexia quanto a bulimia são caracterizadas pelo desejo de emagrecer, mas pode ser ocasionado por outros fatores — Foto: Helô D’Angelo

Mas tanto a anorexia quanto a bulimia são caracterizadas pelo desejo de emagrecer, mas pode ser ocasionado por outros fatores — Foto: Helô D’Angelo

Segundo o psiquiatra, não existe uma única causa para tais transtornos. Eles podem envolver fatores biológicos, familiares e, principalmente, sociais. “A questão sociocultural está extremamente documentada. A exposição a corpos muito mais magros que o habitual acaba gerando insatisfação com o próprio corpo, o que pode ser um gatilho para transtornos alimentares”, aponta.

Na visão do especialista, deveríamos estimular as pessoas a gostarem de si mesmas como elas são. “Não estou falando de pessoas que precisam perder peso por condição médica. O que não dá é partir para dietas por causa de um vídeo do TikTok”, destaca. “Por que alguém tomaria uma injeção para diabetes para deixar de comer? Ou faria seis horas de atividade física em um dia só para perder peso? Precisamos de mais campanhas para aceitação do corpo.”

O curioso é que, na última década, essas campanhas têm surgido — o maior representante delas é o movimento body positive, que prega a aceitação ou positividade em relação aos diferentes tipos de corpos. E isso vale tanto para tamanho quanto para cicatrizes, rugas e 1990, ela ganhou força a partir de 2015 nas redes sociais. “Estamos caminhando positivamente. Apesar do teto de vidro, já ganhamos muita coisa nos últimos 100 anos e vamos continuar avançando”, opina a historiadora Mary del Priore.

“A exposição a corpos muito mais magros que o habitual acaba gerando insatisfação com o próprio corpo, o que pode ser um gatilho para transtornos alimentares”
— Fábio Salzano, vice-coordenador do Programa de Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria da USP.

Mas há quem veja o cenário com menos otimismo. “Não houve relaxamento [dos padrões de beleza]”, pontua a psicóloga Vilhena. “Há denúncia, e aí virou politicamente incorreto [criminalizar o corpo gordo]. Mas é só ver que essas práticas cirúrgicas e medicamentosas ainda estão em uso.” Ela ressalta que o que está em pauta é o direito à existência, em uma discussão que extrapola as questões estéticas para a esfera de políticas públicas e direitos humanos, por exemplo. “Deveríamos avaliar o sujeito por outros parâmetros”, sugere. Enquanto a beleza — natural ou não — for o balizador do nosso valor perante a sociedade, dificilmente sairemos desse ciclo sem fim de sofrimento e busca pelo inalcançável.

https://revistagalileu.globo.com/sociedade/comportamento/noticia/2023/06/culto-ao-emagrecimento-e-tendencia-novamente-e-isso-e-um-perigo.ghtml