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Márcia, do IPq, fala sobre ansiedade e  o uso das redes sociais no celular, em entrevista para a Revista Problemas Brasileiros. Confira!

 

Nação ansiosa

28 de junho de 2024

 

A psiquiatra Márcia Morikawa recebeu em seu consultório, na cidade de São Paulo, um paciente de 11 anos com fobia de elevador, um tipo específico de transtorno de ansiedade. Quando ela conferiu o tempo de uso das redes sociais no celular do pré-adolescente, um choque: o garoto passava seis horas por dia só no TikTok. “Se ele fica cinco horas na escola, dorme outras oito e passa mais seis horas no aplicativo, não sobra tempo para mais nada”, relata a psiquiatra.

O caso exemplifica um hábito bem brasileiro. Segundo a pesquisa Digital 2024: Global Overview Report, somos o terceiro país que mais usa as redes sociais no mundo, com uma média diária de 3 horas e 37 minutos. E o tempo em frente às telas se traduz em dados alarmantes de ansiedade, frente ao Brasil no topo do ranking dos países com o maior índice do transtorno. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), quase 19 milhões de brasileiros sofrem com transtornos de ansiedade, o que equivale a 9,3% da população.

O dado mais recente, no entanto, mostra algo inédito — e preocupante: pela primeira vez, os casos de ansiedade entre crianças e adolescentes superam os de adultos. O jornal Folha de S. Paulo fez um levantamento com base nos números de atendimentos realizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) entre 2013 e 2023. Enquanto 112,5 a cada 100 mil adultos que apresentavam sintomas de ansiedade foram atendidos, esse número era de 125,8 a cada 100 mil na parcela de crianças de 10 a 14 anos. Entre adolescentes de 15 a 18 anos, a situação era ainda mais grave: 157 a cada 100 mil. A quadro presente nos mais jovens piorou, segundo a pesquisa, a partir dos anos 2000, justamente com a popularização dos smartphones e das redes sociais.

Outra pesquisa, desta vez do Instituto Cactus em parceria com a AtlasIntel, mostra que apesar do desconforto, há pouca assistência. Neste levantamento, 68% dos brasileiros relatam sentimento de nervosismo, ansiedade e tensão, mas 55,8% nunca procurou um profissional da saúde para lidar com questões relacionadas a transtornos de ansiedade. Ao todo, 26% dos brasileiros relatam que foram diagnosticados com transtorno de ansiedade e a busca por ajuda tem o fator gênero como diferencial: 65,4% dos homens alegam não terem procurado um profissional para lidar com questões relacionadas à ansiedade.

DESCONECTEM-SE

O tema, no entanto, não é exclusividade nacional. Nesse movimento de alerta sobre as consequências do uso desenfreado de celulares, o psicólogo Jonathan Haidt, professor na New York University, defende que os aparelhos sejam banidos da infância. Ele é autor do livro A geração ansiosa: como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais, best-seller nos Estados Unidos com data de publicação no Brasil em julho deste ano, pela Cia. das Letras.

Segundo Haidt, a tecnologia afasta as crianças da vida real. Assim, ele sugere quatro soluções: acesso ao smartphone apenas quando ingressarem no ensino médio; nada de celulares na escola; proibição de redes sociais para menores de 16 anos; e mais independência, responsabilidade e brincadeiras às crianças. “Normalmente, as questões científicas foram enquadradas de forma um tanto restrita para torná-las mais fáceis de abordar com dados. Por exemplo, os adolescentes que consomem mais mídias sociais têm níveis maiores de depressão? Usar smartphone antes de dormir interfere no sono?”, escreveu Haidt em artigo para a revista The Atlantic. “As respostas a essas questões, geralmente, são ‘sim’, embora o tamanho dessa relação seja estatisticamente pequena. Isso levou alguns pesquisadores a concluir que as novas tecnologias não são responsáveis pelo gigante aumento de doenças mentais que começou no início dos anos 2010”, alerta. De acordo com o professor, a infância baseada no celular, que tomou forma há 12 anos, está deixando os jovens doentes e bloqueando o progresso para que floresçam na vida adulta. A reivindicação do psicólogo é precisa: “Precisamos de uma dramática correção cultural, e precisamos disso agora”.

Haidt já influenciou algumas milhares de pessoas mundo afora. Nos Estados Unidos, o movimento Wait Until 8th (“Espere até o Oitavo Ano”, em tradução livre) já reuniu mais de 50 mil famílias. Na Inglaterra, outras 60 mil famílias se engajaram no Smartphone Free Childhood (ou “Infância sem Smparthone”). No Brasil, pais e mães criaram o grupo Desconecta, que propõe um pacto: presentear os filhos com celulares somente depois dos 14 anos e liberar o acesso às redes sociais a partir dos 16. O movimento nasceu em abril, quando algumas pessoas não conseguiam afastar os rebentos do uso excessivo do aparelho. Para isso, era preciso que outras crianças também estivessem na mesma situação. Daí nasceu a proposta de ações coletivas para a conscientização de pais e filhos.

“Quando as crianças estão com o celular, elas deixam de interagir socialmente, deixam de brincar e de ampliar as regulações emocionais que têm nas vivências reais. O aparelho transforma essas vivências em artificiais”, explica a psicóloga Desiree Cordeiro, que faz parte do grupo de mães do Desconecta. “Não se trata de alienar as crianças da tecnologia, que existe e faz parte da nossa vida. É ensiná-las a lidar com essas ferramentas de forma saudável. Se adotarmos o ‘Eu não tenho, e você tem’, a criança será excluída. Então, é preciso que todos tenham o acesso restrito.”

Enquanto grupos da sociedade civil se articulam, alguns governos também se posicionam na discussão. No início do ano, o Estado da Flórida, nos Estados Unidos, proibiu o uso de redes sociais para menores de 14 anos. Na cidade do Rio de Janeiro, alunos da rede municipal de ensino não podem mais usar o celular nem mesmo durante o recreio. Em São Paulo, a Assembleia Legislativa já discute se vai banir ou não a entrada dos dispositivos nas escolas privadas e públicas do Estado.

O QUE DIZ A CIÊNCIA

Importante lembrar que é sempre necessário contextualizar realidades antes de compará-las. O uso excessivo de mídias sociais não é a única causa para o alto índice de ansiedade em terras nacionais. Insegurança quanto ao futuro, desigualdade social e crise climática também prejudicam a saúde mental dos brasileiros. “Além dessas questões, ainda temos uma cultura de gastos irreal frente aos salários, bem como uma educação financeira ruim e um desejo de consumo — por exemplo, de um iPhone de última geração — mesmo sem ganhar o suficiente para isso”, pondera a psiquiatra Márcia.

No entanto, uma série de estudos aponta que internet descomedida entra como um ingrediente extra e poderoso na receita que nutre uma população ansiosa, ainda que não haja uma relação causal direta entre os fatores. O estudo “Upward social comparisons and posting under the influence: Investigating social media behaviors of U.S. adults with Generalized Anxiety Disorder” (“Comparações sociais e postagens: investigando comportamentos de mídia social de adultos dos EUA com transtorno de ansiedade generalizada”, em tradução livre), de um grupo de pesquisados das universidades de Nevada, Texas e Louisiana, ao avaliar o consumo das redes por pessoas com transtorno generalizado de ansiedade, concluiu que a maior parte era viciada em mídias sociais. E como consequência da “cultura do like”, comparavam as próprias vidas com a de terceiros muito mais do que o restante dos participantes do estudo. Quem sofria de ansiedade também tendia a se chatear mais quando perdia algum seguidor.

Uma revisão de estudos já publicados feita por pesquisadores da Universidade King’s College, de Londres, concluiu que existe uma correlação entre o uso de redes sociais por adolescentes e casos de estresse, depressão e ansiedade. Contudo, também alertaram que ainda há “fatores pouco explorados que possam explicar essa relação”. Como em todo vício, o sistema de recompensa do cérebro é ativado durante uma interação bem-sucedida ou um post cheio de curtidas. Quando a expectativa não se concretiza, vem a ansiedade — e a busca por novos likes. “As consequências são ainda piores para os jovens, que ainda têm um cérebro em desenvolvimento. São mais impulsivos, ainda aprendendo a se regularem emocionalmente, e mais intolerantes à frustração”, explica Márcia. “Quanto maior o consumo de redes sociais, maior a liberação de dopamina. E isso faz com que eles queiram consumir cada vez mais esse conteúdo, principalmente vídeos curtos, reels e shorts do YouTube, porque a sensação de recompensa imediata é maior.”

Além da saúde mental, diante do aumento dos casos de ansiedade e depressão entre os jovens, a psiquiatra alerta para a redução na capacidade de atenção entre crianças e adolescentes. Ela cita uma pesquisa que, em 2015, já apontava que, desde 2000, essa capacidade havia caído de 12 para 8 segundos. “Hoje, provavelmente, isso está ainda mais reduzido”, reforça Márcia.

https://revistapb.com.br/saude/nacao-ansiosa/