Cornelia Belliero Martini , psicóloga voluntária do IPq, explica quando uso de rede social vira vício, em entrevista ao g1. Confira!
Está difícil desapegar do X? Especialista explica quando uso de rede social vira vício; em SP, HC atende dependentes tecnológicos
g1 conversou com internautas e especialista do hospital após queda do X no Brasil para entender quando o uso saudável vira um vício. Em SP, o Hospital das Clínicas oferece atendimento grátis para quem sofre com a dependência.
Por Deslange Paiva, Lívia Martins, g1 SP — São Paulo
Página inicial do X, antigo Twitter — Foto: AP Photo/Rick Rycroft
“Já me peguei várias vezes abrindo o aplicativo, sem perceber. Minha mão já faz o movimento automático, e eu fico só olhando o celular.”
Duas semanas após a suspensão do “X” no Brasil, quem migrou para outras redes sociais ainda tem saudade, ansiedade e até o costume de tentar entrar no aplicativo, mesmo sabendo que ele não está funcionando, como admitiu uma ex-usuária da plataforma na frase que abre esta reportagem.
Quem não migrou para outras redes improvisou: criou canal no WhatsApp e fez de X, passou a usar bloco de notas no celular e até escrever em uma folha de papel.
Mas quando esses sentimentos viram um sintoma de vício em tecnologia?
Para responder essa pergunta, o g1 conversou com internautas e com uma psicóloga do Grupo de Dependências Tecnológicas do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
“Fiquei até o apagar das luzes [do X]. Estava esperando dar 0h no dia que caiu, lembro até de ter visto um último tweet e, do nada, o aplicativo parou de atualizar. Desde então já me peguei algumas vezes abrindo, mesmo sem perceber. Pego o celular e automaticamente meu dedo vai no aplicativo”, afirma a bancária Larissa Oliveira, de 32 anos, que estava na rede social desde 2009.
A designer Clara Paulino, de 29 anos, tem o mesmo hábito. Ela costuma abrir uma nova aba no navegador e, quase que automatizado, digita o endereço do site. “Só depois lembro que está fora do ar. Quando caiu, eu me senti ansiosa. Já havia reduzido o uso no último ano, em um esforço para tentar recuperar a minha capacidade de concentração e direcionar meu tempo para outras atividades.”
“Quando caiu, fiquei até um pouco aliviada. Parar de usar o Twitter do dia para a noite é difícil, um impedimento judicial vem muito a calhar”, completa Clara.
Larissa e Clara estavam na rede social havia 15 anos. Elas descrevem também que, sem o X, têm mais dificuldades em achar informações, além de sentir falta de interações.
“Comecei usando como uma forma de expressão e registro, bem despretensiosa, mas acabei encontrando comunidades com interesses similares aos meus. Já vivi meio que de tudo ali: fiz amigos, namorei e consegui emprego”, disse a designer.
“Basicamente entrava todo dia, ao acordar e antes de dormir para ver o que estava rolando e passar o tempo. Sempre foi tempo real, então, fora o dia a dia, amava acompanhar grandes eventos, como ver novela, Olimpíada, debate político, reality show e premiações, assistia tudo por ali mesmo”, contou Larissa.
Segundo a psicóloga Cornelia Belliero Martini, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, a dependência tecnológica abrange desde uma rede social até videogame.
No caso da suspensão do X no país, a especialista avalia que os incômodos sentidos pelos usuários se dão pela intimidade que foi criada com a rede social ao longo do tempo.
“Quando foi suspenso, de certa forma tirou um prazer desse internauta de uma maneira repentina. Eles foram tirados da sua zona de conforto. O que as redes sociais dão são recompensas imediatas para o nosso cérebro, porque na vida real não é bem assim que funciona”, afirma.
“Essa pessoa estava vivendo no automatismo dela e de repente isso termina e causa um mal-estar, era algo que fazia parte do seu dia a dia e de repente já não está mais lá. Essa busca de entrar no aplicativo mesmo sabendo que ele não está funcionando é algo automatizado, as mãos já lembram do movimento, então você acaba fazendo mesmo sem intenção”, completa.
Sensação de desinformação
Tanto Larissa quanto Clara relataram uma dificuldade em ter acesso a informações do dia a dia. Larissa usava a rede social em momentos de tédio e preenchia o momento com o X.
“Acho que é isso que tinha lá, de fato um senso de comunidade. Era um lugar de dar risada, me informar e, mesmo sem tuitar tanto, me sentir como parte da conversa. Além de ser o local em que eu estava acostumada a pesquisar sobre as coisas. Por exemplo, no final de semana teve um apagão no Centro e eu não sabia, mesmo morando a poucos metros do local.”
Rede social X já foi alvo de ações na Justiça e cumpriu determinações sem questionamentos em outros países — Foto: Reprodução/TV Globo
E, agora, José?
Clara Paulino contou que criou conta para usar a rede social Bluesky porque percebeu semelhanças desse serviço com o X. ” Eu tenho tentado aproveitar para repensar o uso das redes e ver como me sinto”, contou.
Já Larissa Oliveira, quando sente vontade de postar algo que seria uma publicação no X, manda mensagem para uma amiga pelo WhatsApp. “Mandei uma frase engraçadinha com menos de 280 caracteres para ela”, completou.
Quando questionadas sobre um possível retorno da rede social, Larissa diz que quer sim voltar, já Clara afirma que espera que o X “respeite e colabore com a lei brasileira”.
“Acho que é muito desafiador dosar o uso de internet porque o mesmo lugar que é fonte de ansiedade é também uma ferramenta grande de troca e inspiração criativa. Mas meu objetivo é consumir mais coisas de qualidade que comprometam menos minha saúde”, afirma.
Quando vira um vício?
O que determina se o indivíduo se torna dependente ou não é quando o uso passa a trazer impactos negativos para a vida.
“A rotina começa a ser totalmente alterada pelo uso. Ele vai ganhando força e entrando em uma escalada sem fim, no primeiro momento o usuário tem um alto engajamento, mas ainda assim dá conta das suas atividades diárias. Desse alto engajamento até a dependência é uma linha muito tênue”, afirma a psicóloga.
Segundo Cornelia, causa preocupação quando a vida offline é trocada pela online, e a pessoa deixa de realizar atividades diárias, além de negligenciar estudo, alimentação, higiene pessoal. “Ela se isola porque passa o tempo todo na rede e fica interagindo só com a tela.”
O alerta máximo para uma dependência começa quando o usuário fica cerca de 15 horas online, sem considerar o tempo de trabalho, o que não é o caso das entrevistadas nesta reportagem.
Quais são os sintomas?
- Problemas de visão, por ressecamento nos olhos;
- Dores nas mãos;
- Dores nas costas;
- Dores no pescoço, por passar muito tempo inclinado;
- O paciente ainda pode desenvolver ansiedade e depressão.
“Um viciado é uma pessoa que não usa [a tecnologia] para o trabalho, são pessoas que ficam 12, 14 e até 15 horas conectadas – o que interfere no sono, na alimentação. Quando você se torna dependente de algo, não é do dia para a noite, é um processo que vai acontecendo e, quando a pessoa se dá conta, ela está totalmente no mundo digital”, diz Cornelia.
Há 18 anos, o Hospital das Clínicas trata pessoas com vício em tecnologia. Ao longo desse período, passaram por lá mais de 200 pacientes. A equipe é formada por psicólogos e psiquiatras que atendem os pacientes em sessões gratuitas e semanais no prédio do instituto. Desde 2010, o Instituto de Psiquiatria também formou grupos de orientação para pais e familiares receberem orientações de como lidar com a dependência tecnológica do parente.
Como funciona o tratamento?
Cornelia Belliero, psicóloga que faz parte da equipe, explicou que o objetivo é ensinar ferramentas e formas para a pessoa ter uma relação saudável com a tecnologia. “Tem que ser um trabalho gradativo, não é recomendável tirar de uma vez. A resposta não é boa”, explicou.
Atualmente, 12 pessoas (sete mulheres e cinco homens) de idades que variam entre 20 e 55 anos estão divididos em dois grupos psicoterapêuticos no centro de atendimento. A especialista ainda explicou que a maioria de quem procura ajuda tem alguma comorbidade psiquiátrica associada ao vício, como depressão.
Após procurar o atendimento, o paciente passa por uma triagem e passa a frequentar os encontros em grupo. Já as consultas psiquiátricas são marcadas individualmente.
Eles recebem atendimento duas vezes por semana e são tratados de forma multidisciplinar: com atendimento psicológico e psiquiátrico, tanto que só são liberados após receber alta dos psiquiatras.
“Depois de três meses [da alta], nós chamamos de novo a pessoa para saber como é que está o uso [de tecnologia]. O acompanhamento a distância é feito até um ano depois da liberação”, afirmou.
Além dos pacientes, as famílias também recebem atendimento gratuito.