Dra. Rosa Hasan e Dr. Pedro Bacchi, ambos do IPq, falam sobre o uso de zolpidem. Confira a matéria do Medscape.
Jennifer Ann Thomas
29 de janeiro de 2025
A rápida indução do sono fez com que recorresse cada vez mais ao medicamento. A bula do medicamento diz que não deve ser consumido por mais de um mês e não à-toa. Após dez meses, a dose inicial de 20 mg por dia já não surtia efeito, atingiu média diária de 400 mg a 500 mg, com pico de 800 mg em um único dia.
Como consequência do abuso, relatou quedas, queimaduras, envio de mensagens inapropriadas, episódios de esquecimento, dificuldade de memorizar informações, falta de atenção e sonolência excessiva durante o dia. Maria precisou do monitoramento frequente de seus familiares e chegou a ser hospitalizada por um mês, o que a levou à abstinência. Contudo, a recaída veio logo após a alta. O vício venceu, retornou ao padrão de uso anterior e interrompeu o acompanhamento.
A história de Maria é um dos cinco casos relatados por pesquisadores brasileiros em um artigo publicado no periódico Frontiers in Psychiatry, que descreve a realidade de mulheres com dependência em zolpidem e que foram atendidas pelo Programa da Mulher Dependente Química (PROMUD), do Instituto de Psiquiatria da USP.
“Todas as pacientes iniciaram o uso de zolpidem devido a queixas de insônia, com aumento progressivo da dosagem até se tornarem dependentes do medicamento”, apontaram os pesquisadores, Gabriel Leal, graduando em medicina da USP e primeiro autor do artigo, e o Dr. Pedro Bacchi, que é psiquiatra e coordenador de pesquisa do PROMUD. Os dois assinam em conjunto o e-mail pelo qual mantiverem contato com o Medscape.
“Esses cinco casos sugerem que muitos pacientes no Brasil podem estar recebendo prescrições de zolpidem sem o devido acompanhamento clínico, ou sem a consideração de medicamentos de primeira linha para o tratamento da insônia”, complementaram. As pacientes chegaram a consumir doses diárias de até 900 mg, enfrentando efeitos colaterais graves, como crises de convulsão, perda de memória e episódios dissociativos.
Inofensiva alternativa
O zolpidem ganhou espaço na década de 1980 como uma alternativa aos benzodiazepínicos, amplamente utilizados e já famosos por causarem dependência. Medicamento da classe dos hipnóticos não benzodiazepínicos, age no sistema nervoso central ao se ligar a receptores específicos do neurotransmissor GABA, que é responsável por regular a atividade cerebral e promover efeitos calmantes. Essa ligação potencializa a ação do GABA, reduzindo a excitabilidade neuronal e induzindo um estado de relaxamento e sonolência.
Ao contrário dos benzodiazepínicos, o zolpidem não provoca sonolência no dia seguinte, o que fez com que fosse considerado mais seguro no tratamento da insônia. Vendida com receita branca especial, tornou-se um dos medicamentos mais prescritos no país. Entre 2014 e 2021, as vendas aumentaram 246%, segundo a Anvisa.
De acordo com a bula, um adulto com menos de 65 anos deve consumir, no máximo, um comprimido ao dia, equivalente à 10 mg. O artigo da Frontiers in Psychiatry demonstra que, na prática, o consumo excede em muito o estabelecido, atingindo dezenas de comprimidos.
O medicamento “pode causar exacerbação da insônia, pesadelos, nervosismo, irritabilidade, agitação, agressividade, acessos de raiva, ideias delirantes, alucinações, comportamento inapropriado e outros distúrbios de comportamento. Além de aumentar a incidência de suicídio e tentativa de suicídio em pacientes com ou sem depressão”, afirma uma nota técnica do Conselho Regional de Farmácia de Minas Gerais (CRFMG). “Diferentemente do que se acreditava, dados mostram que o medicamento tem o potencial de desenvolvimento de abuso ou dependência física ou psíquica, além da capacidade de gerar tolerância após uso prolongado.”
Segundo a Dra. Dalva Poyares, neurologista do Instituto do Sono, o zolpidem está associado ao sonambulismo e, durante essa condição, a pessoa sob efeito da medicação pode ter atitudes imprevisíveis. “Se o indivíduo tomar o medicamento muito cedo ou no momento quando não deveria, o organismo não entende que a pessoa deveria estar dormindo. A pessoa fica entre a vigília e o sono e pode apresentar comportamentos perigosos”, disse.
Riscos e recomendações
Em maio de 2024, a Anvisa aprovou o aumento de controle para o zolpidem, que passou ser prescrito por meio da Notificação de Receita B (azul). Segundo a agência, “a medida foi adotada a partir do aumento de relatos de uso irregular e abusivo relacionados ao uso do zolpidem. A análise conduzida pela Anvisa demonstrou um crescimento no consumo dessa substância e a constatação do aumento nas ocorrências de eventos adversos relacionados ao seu uso”.
Desde o início de dezembro de 2024, todo medicamento contendo zolpidem deve conter uma tarja preta na embalagem.
Quando prescrito com acompanhamento médico, a orientação é que o paciente consuma o remédio no horário de adormecer que condiz com a sua necessidade fisiológica e quando já estiver na cama, pronto para dormir. Segundo o CRFMG, o zolpidem deve ser utilizado durante dois a cinco dias para casos de insônia ocasional, e de duas a três semanas para casos de insônia transitória.
Seu uso é pontual, como explica a Dra. Rosa Hasan, neurologista coordenadora do Laboratório de Sono do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq HCFMUSP). Um exemplo de situação em que o zolpidem pode ser prescrito é no caso de uma internação hospitalar para fazer uma cirurgia.
“Se a situação estiver desconfortável para dormir, a pessoa pode estar ansiosa e com dor, o remédio pode ser prescrito por alguns dias. Antes de uma operação, por exemplo, o paciente pode não conseguir ficar bem para dormir. No entanto, o medicamento deve ser usado apenas durante um prazo curto e sob supervisão”, disse.
Para ela, no entanto, a melhor alternativa para os pacientes não é farmacológica. “A melhor opção é ter bons hábitos. A insônia pode acontecer por doença mental, ansiedade, depressão, entre outros fatores, e a opção é tratar a doença de base. Muitas vezes é preciso uma mudança de estilo de vida, inclusive com psicoterapia”, afirmou.
A Dra. Dalva concorda que há outras formas de tratar a insônia e que não precisam de zolpidem, como a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), buscar boas informações, desenvolver bons hábitos e aplicar técnicas de relaxamento. No entanto, caso o profissional de saúde decida receitar o zolpidem, é importante que o tratamento seja de curto prazo.
Educação para a saúde
Para os autores do estudo publicado na Frontiers, o uso indiscriminado dessa medicação pode favorecer o desenvolvimento de uso abusivo, dependência e abstinência, o que acarreta custos significativos para o sistema de saúde, não apenas relacionados ao consumo do sedativo. “Atualmente, o sistema de saúde não está preparado para lidar com a dependência de zolpidem, tanto no que diz respeito ao manejo clínico desta condição, quanto às ações de farmacovigilância no Brasil”, afirmaram.
Para a Dra. Dalva, a exigência do receituário azul ajuda a minimizar o problema. “Essa receita é restrita à classe médica e a alguns especialistas. O combate ao exagero é feito por um conjunto de ações. Passa por educar a população e buscar tratamentos não medicamentosos, como a psicoterapia, principalmente para quem tem uma dependência mais acentuada.”
“Temos que entender que não pode haver uma banalização de prescrição desse tipo de medicação. Precisamos desenvolver tratamentos personalizados, não tem uma fórmula de sucesso”, conclui a Dra. Rosa.