Dorli Kamkhagi, do IPq, fala sobre o luto pela juventude, em entrevista ao Jornal Estadão.
Luto pela juventude: por que é tão difícil encarar as marcas físicas do envelhecimento?
Envelhecer envolve deixar para trás certos aspectos da juventude e encarar a realidade de um corpo que muda; processo pode gerar ansiedade, depressão e dificultar a compreensão dos limites entre autocuidado e negação
Luto pela juventude: por que é tão difícil encarar as marcas físicas do envelhecimento?
Atualização:
Assista o vídeo da entrevista aqui
Ambientado em Hollywood, o filme A Substância — vencedor de Cannes 2024 — começa com uma imagem da clássica Calçada da Fama, onde uma nova estrela está sendo colocada. O nome gravado é o de Elisabeth Sparkle, personagem vivida por Demi Moore. Porém, à medida que o tempo passa, a estrela cravada no chão começa a trincar, é pisoteada e deixa de atrair os flashes das câmeras. Um homem passa por ela, deixa cair um hambúrguer, e a estrela termina manchada de catchup.
A cena sintetiza a queda da carreira de Elisabeth diante das exigências da indústria do entretenimento, que passa a buscar uma mulher mais jovem para ocupar seu lugar em um programa de TV. É aí que ela surge como candidata ideal para testar uma droga misteriosa e injetável que promete a criação de uma segunda versão de si mesma, mais jovem e atraente.
Mas as duas versões não podem existir ao mesmo tempo. No início, Elisabeth enxerga nessa alternância uma chance de conquistar tudo o que sempre quis. Só que o plano logo desanda. Ela se torna refém de si mesma. Ou melhor, da sua duplicata (interpretada por Margaret Qualley).
Apesar de ser uma ficção, o incômodo com o envelhecimento é real. Hoje, inclusive, não faltam comprimidos, cremes e tratamentos “anti-aging” que prometem resultados quase mágicos. Mas o tempo, inevitavelmente, passa. “O problema é que ainda não aprendemos a envelhecer”, avalia a psicóloga Cecília Galetti, vice-presidente do Departamento de Gerontologia da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), seccional Paraná.
Segundo ela, a autopercepção sobre o corpo envelhecido costuma vir como um susto. “A pessoa olha no espelho e diz: ‘De repente, fiquei velho’. Mas não é de repente. É um processo, só que muita gente evita olhar para ele”.
Para a especialista, essa dificuldade em lidar com o envelhecimento também reflete os valores sociais. “Se vivemos em uma cultura que exalta juventude, força e produtividade, o que sobra para quem parece não se encaixar nesse padrão?”
Uma questão de gênero
Nesse processo, há quem consiga manter a autoestima fortalecida e viver com leveza, de forma alinhada ao que faz bem. Ainda assim, o peso social é inegável. E ele recai, especialmente, sobre as mulheres.
O geriatra Milton Crenitte, diretor técnico do Centro Internacional de Longevidade (ILC), observa que os homens costumam ter mais “permissões” sociais para envelhecer. A mudança física, nesses casos, pode até ser vista como charme ou sinal de maturidade. Já no caso das mulheres, a cobrança estética permanece implacável. Cecília lembra, por exemplo, o quanto atrizes famosas se tornam alvo de comentários cruéis ao aparecerem de biquíni em público, como se tivessem a obrigação de manter o mesmo corpo para sempre.
Entre os homens, o impacto do envelhecimento tende a se manifestar de outras formas, como na funcionalidade. Cecília conta que, em sua experiência em um ambulatório voltado à sexualidade na terceira idade, a maioria dos que buscavam ajuda eram homens — muitos com dificuldade para lidar com as transformações físicas, especialmente aquelas ligadas à performance sexual. “Isso não significa que as mulheres não valorizem a vida sexual, mas os homens parecem mais propensos a procurar ajuda diante dessas mudanças.”
Na avaliação de Crenitte, o envelhecimento costuma ser ainda mais desafiador para quem já enfrentava dificuldades de aceitação e pertencimento. Além das mulheres, isso inclui, por exemplo, pessoas LGBTQIA+ e pessoas negras. Ele explica que, em muitos casos, o corpo é um dos espaços onde esses indivíduos se sentem reconhecidos ou pertencentes. “No envelhecimento, isso vira uma questão. Então, quem já sofreu exclusão social ou preconceito — por cor, renda, orientação sexual ou identidade de gênero — geralmente enfrenta mais sofrimento ou uma percepção diferente em relação às ‘marcas do tempo’.”
Processos simbólicos e subjetivos
Mais do que alterações físicas ou declínios funcionais, o envelhecimento é atravessado por transformações simbólicas e subjetivas. Para os especialistas, é nesse terreno invisível — onde moram expectativas, frustrações e reorganizações de identidade —, que surgem os maiores desafios.
Cecília lembra o caso de uma paciente que decidiu fazer aulas de canto depois da aposentadoria. Mas, ao prestar mais atenção na voz, ela percebeu que não era mais a mesma. “Aquilo incomodou de uma tal forma que ela acabou se autossabotando e arrumou mil desculpas para não seguir em frente. Então veja: esse processo vai muito além das rugas ou do cabelo branco.”
Segundo a psicóloga Dorli Kamkhagi, do Instituto de Psiquiatria (IPq) da USP, é muito comum ouvir a frase: “O corpo não acompanha a minha cabeça”. A pessoa continua com vontade, lucidez, planos — mas começa a perceber que precisa fazer as coisas em outro ritmo. Além disso, certos marcos da vida funcionam como gatilhos: aniversários, aposentadoria, divórcio, entre outros. “Muitas vezes, é uma data que acende a reflexão: ‘Fiz 50 anos, o que mudou na minha vida? O que essa idade está me propondo?’”, diz.
Para muita gente, esses gatilhos emocionais do envelhecer também se ligam a momentos familiares. “Tornar-se avó ou avô é algo especial, transformador, mas também pode carregar um simbolismo difícil de encarar. É como se, de repente, a pessoa deixasse de ser vista como alguém desejável, como se tivesse ficado ‘velha demais’ para certas experiências”, exemplifica.
Em outros casos, o envelhecimento funciona como um lembrete incômodo dos planos que não saíram do papel. “Muitos pacientes dizem: ‘Cheguei aos 60, mas continuo naquele trabalho que não gosto, em um casamento que não me faz feliz, meus filhos já saíram de casa e percebo que uma parte da minha vida está estagnada’”, conta Dorli. “E aí a idade, mais do que um número, passa a ser um tipo de cobrança sobre tudo aquilo que não foi feito.”
Embora lide há anos com o assunto “envelhecimento”, a psicóloga conta que os conhecimentos não foram suficientes para aliviar seu próprio processo. “Fazer 70 anos foi um marco enorme para mim. Os filhos casaram, depois descasaram, vieram os netos… É um corpo que já não é mais tão bonito, embora hoje eu consiga reconhecer a sua potência. Agora, as marcas no rosto… Foram difíceis. Não me deprimiram, mas me pegaram de jeito. Não foi simples.”
“Uma coisa é saber racionalmente, outra é sentir na pele que o tempo está passando. E pensar: talvez eu esteja na metade da minha vida, o que ainda é muito, mas é diferente do que veio antes”, acrescenta.
Menopausa: um marcador significativo
Entre as mulheres, a menopausa aparece como um marco especialmente importante. É nessa fase que podem surgir ondas de calor, mudanças na libido e na lubrificação, redistribuição do peso, entre outros sinais. “Essa transição, que pode ser longa e cheia de nuances, gera um estranhamento com o próprio corpo. É comum a mulher se perguntar: ‘E agora? Quem sou eu nessa nova etapa da vida?’”, explica Cecília.
A empresária Eneida (nome fictício), de 49 anos, costuma dizer que está vivendo a “passagem do meio”. “Estou quase nos 50 e percebendo mudanças que, pra mim, são muito libertadoras. Eu não estou na menopausa propriamente dita, mas estou quase lá, na transição, no chamado ‘climatério’. E essa transição é marcada por muitas transformações. Acho que essa é a palavra a ser grifada: transformações.”
Entre essas mudanças, uma das primeiras que notou foi a alteração na lubrificação. Além disso, a perda de colágeno, períodos de inchaço e o sumiço dos ‘recheios’, como ela costuma dizer. “Parece que eles vão saindo de alguns lugares e se acomodando em outros, especialmente na barriga”, compartilha.
Perceber essas mudanças, segundo ela, não foi simples. Vieram os questionamentos típicos: “Será que minha vida vai mudar demais?”. Hoje, ela ainda não sente que assumiu completamente essa nova fase, mas tem se permitido viver o processo. “Você vai se informando, vai descobrindo que não é o fim. É como se fosse uma nova roupa que você veste. E ela vai aderindo a você. E você vai fazendo as coisas de outro jeito, no seu tempo, já sabendo do que gosta e tendo autonomia sobre si. Essa emancipação, pra mim, se sobrepõe às mudanças corporais que a gente tem e que às vezes desagradam”, complementa.
Viver esse processo — que, ela faz questão de lembrar, não é igual para todo mundo — tem sido uma chance de se abrir para novas experiências. “Nada morre, como eu imaginava. Mas renasce ou recomeça de um jeito muito interessante. Eu digo que estou conhecendo novas Eneidas.”
A linha tênue entre autocuidado e negação
Em que momento o autocuidado deixa de ser saudável e se torna uma forma de negar o envelhecimento? Como saber se investir em tratamentos estéticos, exercícios e procedimentos é uma forma genuína de se cuidar ou apenas uma tentativa de fugir das mudanças naturais do corpo?
Para Dorli, o ponto chave está em reconhecer os limites pessoais. É importante saber o que é possível e saudável fazer, além de diferenciar quando as ações são para o próprio bem-estar ou para agradar o olhar do outro. Exercícios, medicamentos e tratamentos estéticos podem, sim, ser recursos positivos, desde que não beirem o exagero ou se transformem em uma perseguição a uma aparência passada ou inalcançável.
“Muitas vezes, as pessoas entram nessas práticas indiscriminadamente, influenciadas por interesses comerciais ou pressões sociais. É importante entender a diferença entre cuidado genuíno, exagero e fantasia”, complementa Dorli.
Vale ressaltar que o Brasil está entre os países que mais investem em procedimentos estéticos e terapias anti-envelhecimento, mas, como observa Crenitte, “isso não significa que sejamos mais felizes”.
Para ajudar na reflexão, Cecília sugere se fazer uma pergunta simples: o autocuidado está trazendo leveza ou peso para a sua vida?. “Quando a preocupação em evitar o envelhecimento vira regra, o processo natural deixa de ser vivido com autenticidade. O excesso de controle, em vez de proteger, aprisiona, e o risco é passar tanto tempo tentando manter o ontem, que se perde a chance de viver o hoje.”
E como tornar essa trajetória mais leve?
Para a psicóloga da SBGG, envelhecer pode ser visto como uma espécie de luto. Embora não seja reconhecido como diagnóstico, ele pode se manifestar por meio de tristeza, ansiedade, sensação de inadequação ou até mesmo depressão. No entanto, esse processo pode ser ressignificado e trazer muitos ganhos, segundo Dorli.
“Você começa a se perceber com mais liberdade para dizer quem é, o que fez e o que quer escolher a partir de agora. Não precisa mais agradar a todo mundo e aprende a relativizar muitas coisas”. É a oportunidade de retomar projetos deixados de lado, como escrever, dançar, ou até redescobrir o amor e a sexualidade, agora com mais consciência do próprio corpo.
Outro ganho importante dessa fase é o autoconhecimento e o perdão. “A gente aprende a se perdoar, a aceitar que não precisa ser perfeito, a ser mais leve e condescendente consigo mesmo. Isso faz a mala da vida pesar menos, abrindo espaço para novos caminhos, escolhas e possibilidades.”
Cecília complementa que envelhecer de forma saudável passa por viver esse luto com aceitação. “Aceito que não tenho mais o corpo jovem, que posso estar mais frágil, e dou um novo significado para minha vida e para meu corpo, do jeito que ele é hoje.”
Nesse caminho, o cuidado integral — físico, emocional, social e espiritual — é fundamental. Ela destaca a importância de manter atividades físicas regulares, alimentação compatível com a fase da vida e atenção à funcionalidade e à autonomia. E isso também passa por investir em cuidados estéticos, como pintar os cabelos — sem fugir do envelhecimento, mas lidando com ele de forma leve e realista. “Também escolhi um óculos que achei charmoso para enxergar melhor, sem resistência.”
Para Dorli, o corpo que envelhece pode não ser perfeito, mas carrega histórias e vivências – e isso, por si só, tem uma beleza que merece ser reconhecida e valorizada. “Hoje, me vejo como alguém que construiu muito, deixou algumas coisas para trás e tem a chance de compartilhar o que aprendeu. No meu trabalho como psicanalista, escuto histórias e acompanho pessoas nessa travessia. Minha audição pode já não ser a mesma? Pode. Faço ginástica? Sim, mas me canso mais rápido. E está tudo bem. Como dizem por aí, continuo ‘na pista’. Gosto de pensar no envelhecimento como uma oportunidade de viver.”