O coordenador de Psicologia e Neuropsicologia do IPq, Antonio de Pádua Serafim, aborda as sequelas físicas e emocionais da Covid-19 em matéria sobre saúde mental da população, na Revista Problemas Brasileiros. Confira a matéria completa:
https://revistapb.com.br/saude/depressao-pandemica/
O covid-19 trouxe para a humanidade um cenário de incertezas e expôs fragilidades, dentre elas, a inabilidade ao tratar a saúde mental da população. Uma pesquisa online aplicada em 130 países pela Organização Mundial da Saúde (OMS) mostra que 93% dos países descontinuaram ou interromperam severamente os serviços essenciais de saúde mental na pandemia. Esta redução de oferta de cuidado segue na contramão do aumento da demanda, na pandemia, em decorrência do luto, do isolamento, da perda de renda e do medo, condições que estão desencadeando problemas de saúde mental – ou agravando os existentes.
De um dia para o outro, muitos precisaram se adaptar a uma nova rotina, gerando consequências. É o caso de Jéssie Ellen Costa Neves, publicitária, 39 anos, que precisou se adaptar ao home office e à dupla jornada. “Quando me vi com o filho pequeno e o marido em casa o dia todo, o pior foi pensar que seria algo rápido. Achei que poderia ser a mulher-maravilha, dando conta 100% de tudo. Não consegui, e isso me frustrou. Com o tempo, vieram estafa mental, crise de ansiedade e burnout”, relata.
Com o filho de 5 anos, Pedro, exigindo atenção, ficou sobrecarregada. “Ele não entendia que eu estava o dia todo em casa e que estava trabalhando, queria atenção. Ao mesmo tempo, nem sempre o trabalho permitia que eu parasse para isso. Tentei criar uma rotina no começo, como muitas mães. Não consegui fazer um esquema de horário para cada atividade com a criança. Infelizmente, eu não conseguia tempo sequer de convencê-lo a participar das aulas online”, lamenta.
Paralelamente, havia em Jéssie o medo de ser dispensada da empresa – que passou por cortes –, fazendo com que ela tomasse decisões que a desagradou, para poder focar no trabalho. “Tive de deixar o meu filho passar o dia em frente a tablet, celular e televisão para que eu conseguisse fazer as entregas de trabalho”, comenta.
Jéssie conta também que aumentou a irritabilidade, por qualquer motivo. “Não conseguia mais conversar com tranquilidade. O coração parecia sempre disparado. Até que aconteceram mais mudanças no trabalho que afetaram ainda mais a vida pessoal. Foi o estopim. Não consegui lidar bem com a situação e só queria chorar. Resolvi procurar ajuda médica. Foi quando fui em uma psiquiatra e ela deu o diagnóstico de burnout”. No momento desta entrevista, Jéssie estava de licença médica. Começou a tomar medicamentos antidepressivos e estava prestes a iniciar a psicoterapia.
O impacto da pandemia na saúde mental ocorre em múltiplos aspectos. O documento da OMS com os dados da pesquisa online mostra que houve aumentos exponenciais de uso de álcool e drogas, insônia e ansiedade. Além disso, o coronavírus pode causar complicações neurológicas e mentais, como delírio, agitação e derrame. Pessoas com transtornos mentais, neurológicos ou que façam uso de substâncias preexistentes são mais vulneráveis ??à infecção por Sars-CoV-2, correndo, inclusive, maior risco de desenvolver quadros severos e de morrer.
Em artigo publicado na revista Frontiers in Immunology, pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) e da Universidade Federal Fluminense (UFF) destacam que o estresse motivado pelo distanciamento social pode levar a alterações imunológicas, com mais produção de substâncias inflamatórias mesmo em pessoas que não foram infectadas. Os autores chamam atenção para a maior vulnerabilidade de alguns grupos, como trabalhadores da saúde, idosos e obesos, que apresentam mais suscetibilidade tanto para quadros graves do covid-19 quanto para distúrbios psiquiátricos.
AS QUATRO ONDAS DA PANDEMIA
A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) define o impacto na saúde mental como a quarta onda do novo coronavírus. A entidade define a primeira onda como o adoecimento e a mortalidade causados pelo coronavírus em si. Em seguida, a restrição de recursos e a reorganização do sistema, afetando pessoas com outros problemas de saúde, que não conseguem ser atendidas em sua totalidade em razão do foco no coronavírus.
A terceira é a interrupção no tratamento de enfermidades crônicas, que exigem acompanhamento médico constante — caso de pacientes com câncer e doenças cardíacas e respiratórias. A quarta perpassa todas as anteriores e segue em crescimento, pois é formada pelo trauma psíquico, pelas doenças mentais e pelo desgaste da sociedade como um todo, inclusive pela crise econômica.
SAÚDE MENTAL DOS RECUPERADOS
O Brasil registra mais de 9 milhões de pessoas que receberam o diagnóstico de covid-19 e se recuperaram, mas é necessário observar as sequelas físicas e emocionais deixadas pela doença. A observação é do psicólogo Antônio de Pádua Serafim, diretor do Serviço de Psicologia e Neuropsicologia do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (IPq/HCFMUSP).
“Todos os dias vemos pacientes que, mesmo recuperados, apresentam as sequelas que levam a incapacidades físicas, assim como perdas de memória e de atenção e quadros depressivos. E quanto mais vulnerável é o contexto socioeconômico, maior é o impacto na saúde mental deste paciente”, destaca Serafim.
O especialista avalia que a política de saúde mental adotada no Brasil é frágil – gargalo potencializado pelo mau entendimento que a população tem sobre o tema. “Há muita desinformação, estigmas e preconceito. A saúde mental é muito associada com loucura. Depressão é, equivocadamente, vista como preguiça. É preciso ofertar campanhas informativas e, assim, desmistificar o tema. A saúde mental não pode ser mais ofertada apenas aos pacientes crônicos, mas também como política de saúde preventiva”, ressalta Serafim.
O psicólogo é o autor principal de estudo publicado na revista científica Plos One, que avaliou o impacto do covid-19 em 3 mil brasileiros dos 26 Estados mais o Distrito Federal. O trabalho mostra que as mais afetadas na pandemia são as “mulheres multitarefa”, que conciliam trabalhos domésticos e vida profissional. Ao todo, 40,5% das mulheres apresentaram sintomas de depressão; 34,9%, de ansiedade; e 37,3%, de estresse.
Por sua vez, o sofrimento psíquico também atingiu quem morava sozinha e não tinha filhos. Os níveis mais elevados de estresse, depressão e ansiedade foram relatados por mulheres nestas condições, situação que, segundo o estudo, provavelmente estivesse associada a outras variáveis consideradas pela pesquisa e que poderiam estar contribuindo para o adoecimento das entrevistadas: muitas delas estavam desempregadas, tinham histórico de doenças crônicas (25,9%) e relataram ter tido contato com pessoas com diagnóstico de covid-19 (35,2%).
REALIDADE BRASILEIRA
Em comparação com a Espanha, morar no Brasil aumenta em seis vezes o risco de piorar a saúde mental. Um fator determinante para a sindemia [conjunto de problemas de saúde interligados que interagem com a pandemia, potencializando o agravo] é a desigualdade social.
Os dados são de pesquisa online com 22 mil brasileiros e espanhóis, coordenada pela Fiocruz e publicada na revista científica Journal of Medical Internet Research. Desde total, mais de 3 mil reportaram ser trabalhadores essenciais. O estudo, que avalia os sintomas de ansiedade e depressão nessa população, aponta que 27,4% sofrem de ansiedade e depressão ao mesmo tempo. “É muito comum que os sintomas de depressão e ansiedade venham juntos”, afirma a psiquiatra Raquel Brandini de Boni, pesquisadora em Saúde Pública no Instituto de Comunicação e Informação Cientifica e Tecnológica em Saúde (ICICT/Fiocruz) e principal autora do estudo.
O trabalho aponta também que 44,3% dos participantes têm abusado de bebidas alcoólicas, 42,9% sofreram mudanças nos hábitos de sono e 30,9% foram diagnosticados ou tratados de doenças mentais no ano anterior.
SAÚDE MENTAL NO SUS
Em nota oficial à PB, o Ministério da Saúde informa que a assistência às pessoas com transtornos mentais é ofertada de forma integral e gratuita no Sistema Único de Saúde (SUS) em todo o Brasil, conforme a necessidade de cada caso.
Entre os serviços de referência para acompanhamento, afirma o documento, estão os 42 mil postos de saúde da Atenção Primária e os 2.749 Centros de Atenção Psicossocial (Caps), que ofertam acolhimento e tratamento à pessoa com transtorno mental e seus familiares, sendo que nesses serviços o cidadão é atendido e, caso seja necessário, encaminhado a outro órgão especializado.
O ministério afirma também que reforçou o atendimento em saúde mental durante a pandemia. A nota explica que foram disponibilizados mais de R$ 65 milhões para abertura de novos Caps, Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs), unidades de acolhimento e serviços hospitalares de referência. Também foram investidos mais de R$ 99 milhões para qualificar o atendimento nos Caps. Além disso, afirma a pasta, R$ 650 milhões foram liberados para aquisição de medicamentos do Componente Básico da Assistência Farmacêutica (CBAF), utilizados para transtornos mentais.
Atualmente, a Rede de Atenção Psicossocial (Raps) também conta com 797 residências terapêuticas; 70 unidades de acolhimento (adulto e infantojuvenil); 1.802 leitos de saúde mental em hospitais gerais; 13.888 leitos em hospitais psiquiátricos; 61 equipes multiprofissionais de atenção especializada em saúde mental; e 144 consultórios na rua.
QUANDO COVID-19 E CÂNCER SE SOMAM
Antes da pandemia, pacientes diagnosticados com câncer, de qualquer tipo, já conviviam com três sentimentos: incerteza sobre o sucesso do tratamento, receio de sofrer e medo da finitude. “Apesar dos avanços dos últimos anos, com novas técnicas e medicamentos e prognóstico muitíssimo melhor, os pacientes temem a quimioterapia e a radioterapia. Com a chegada da pandemia, aumentou a angústia de pacientes e familiares”, relata Maria Teresa Lourenço, médica psiquiatra e head de Psico-Oncologia do A.C. Camargo Cancer Center, referência em Oncologia na América Latina.
Os pacientes oncológicos também tiveram outro forte impacto. Muitos viram os parentes sem câncer contrair covid-19 e até mesmo morrer por causa da doença. “Orientamos todos a não sofrerem sozinhos. Se a caminhada está muito difícil, com ansiedade, angústia, tristeza e cansaço (a pandemia está longa), recomendamos a busca por um especialista. Isso vale para as equipes médicas e os demais colaboradores, pois todos precisam estar bem para cuidar de seus pacientes”, aconselha Maria Teresa.
O covid-19, o câncer e a saúde mental são temas que marcaram, nos últimos meses, a vida de Patrícia Marchionno, de 41 anos. Em home office desde março de 2020, por causa da pandemia, teve crises de ansiedade e engordou. O diagnóstico foi de síndrome do pânico. Em novembro, exames mostraram uma alteração no hemograma (plaquetas baixas) e baço aumentado.
Um mielograma levou ao diagnóstico de tricoleucemia, um tipo raro de leucemia, que costuma ter bom prognóstico. O diagnóstico de leucemia, somada ao contexto da pandemia, afetou a saúde mental de Patrícia. “Meu coração começa a acelerar, por exemplo, se alguém liga do meu trabalho ou quando tenho de sair de casa para fazer um novo exame”, conta ela, que, desde novembro, está afastada do trabalho em licença médica.
CÂNCER E PANDEMIA EM NÚMEROS
De acordo com o Instituto Nacional do Câncer (Inca), eram esperados 626 mil novos casos de câncer, em 2020, no Brasil. Como reflexo do cenário do coronavírus, esta estimativa de diagnósticos de novos casos não se concretiza na prática, pois há uma grade demanda reprimida. Cerca de metade dos brasileiros negligenciou a ida ao médico, não teve acesso ao diagnóstico ou não manteve a rotina de exame. Além disso, pacientes em tratamento descontinuaram a terapia. “O risco é de uma epidemia de casos avançados de câncer na pandemia”, alerta a médica patologista e presidente da Sociedade Brasileira de Patologia (SBP), Kátia Ramos Moreira Leite.
Sete entre dez cirurgias de câncer não foram realizadas nos meses de pico da pandemia. Além disso, houve reduções de 47% na realização de mamografias no SUS e de 46,3% dos diagnósticos de câncer colorretal (intestinos grosso e reto), enquanto 61% dos serviços de radioterapia tiveram mais de 20% de redução do movimento, dos quais 15% viram o número cair em mais de 50%. As informações são do Inca, da Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica (SBCO), da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC), da Sociedade Brasileira de Patologia (SBP) e da Sociedade Brasileira de Radioterapia (SBRT).MOURA LEITE NETTOESTÊVÃO VIEIRA