O psiquiatra André Malbergier, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP e Arthur Guerra de Andrade, professor associado do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP participam da matéria no Jornal Folha de São Paulo.
24.mai.2020 às 23h15Atualizado: 25.mai.2020 às 11h13
Cláudia CollucciMarcella Franco SÃO PAULO
OMS recomenda que países limitem venda de bebida; Alcoólicos Anônimos faz reuniões virtuais para não parar terapia. O isolamento social imposto pela pandemia de coronavírustem provocado o abuso do álcool e de outras drogas, o que levou a OMS (Organização Mundial de Saúde) a recomendar que os países limitem a venda de bebida alcoólica.
No Brasil, exceto pelo fechamento de bares, não há políticas de restrição de vendas durante a pandemia, o que pode tornar o quadro ainda mais preocupante, segundo estudo publicado na revista Alcohol and Drug Review.
O trabalho reuniu pesquisadores de Brasil, Canadá, Estados Unidos e África do Sul, e de órgãos como a OMS.
Na África do Sul, por exemplo, as seções de bebidas dos supermercados foram fechadas. Em alguns lugares dos Estados Unidos, foi proibida a venda de álcool pela internet.
No Brasil, em vários estados os bares foram fechados, mas os que vendem comida e bebida alcoólica por entrega podem permanecer abertos.
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“Os bares estão fechados, então as vendas nesses locais diminuíram, mas as pessoas estão bebendo mais em casa”, diz o psiquiatra André Malbergier, professor do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP.
Segundo ele, as pessoas tentam justificar o aumento no consumo pelo inusitado da situação gerada pela pandemia. “Elas acham que estão vivendo uma coisa anômala e que podem compensar o mal-estar com coisas que dão prazer, principalmente comida, bebidas e drogas.”
O psiquiatra lembra que estudos apontaram o mesmo fenômeno após tragédias anteriores, como queda das Torres Gêmeas e o furacão Katrina, ambos nos Estados Unidos.
“Numa tragédia enorme, é como se fosse justificável lidar com as emoções através de álcool e drogas.”
Outro fato comum, segundo ele, são os dependentes abandonarem tratamentos nesses momentos. “São pessoas com uma motivação flutuante. No momento em que acontece alguma coisa diferente, elas dizem: ‘Não, agora eu vou deixar para quando tudo isso passar.”
De acordo com a psiquiatra Carmita Abdo, secretária da AMB (Associação Médica Brasileira), essa situação de insegurança, de trabalho em casa e de mudança de estilos de vida tem levado sim a um aumento das recaídas.
“Depois do primeiro gole ou uso de qualquer outra droga, a gente sabe que se perdeu todo um trabalho. As pessoas dizem: ‘É só hoje, estou que não me aguento mais’. Aí passou daquela linha tênue entre estar limpo e não estar mais.”
É o caso de Fernando, 47. Sóbrio havia um ano, ele recaiu na bebida durante uma live com amigos, há 15 dias. Estava sozinho em casa, os amigos na tela bebendo e ele não resistiu.
“Tinha ficado com um litro de uísque 12 anos em casa. Sempre encarei como desafio ele estar ali olhando para mim e eu dizendo não. Mas dessa vez não aguentei.”
Não bastassem os movimentos internos de cada um, no Brasil, tem sido frequentes os descontos em aplicativos de vendas de bebidas e artistas fazendo lives [apresentações virtuais] patrocinadas por fabricantes de cerveja.
Recentemente, o Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) notificou a Ambev, por “potencial estímulo ao consumo irresponsável” de álcool em live do cantor Gusttavo Lima patrocinada pela fabricante.
Para os especialistas, se já estava complicado resistir à vontade de tomar uns drinques a mais por causa do isolamento, dada a ansiedade que a falta de contato social e o tédio podem trazer, a tentação parece ainda maior quando celebridades entornam o copo.
O psiquiatra Arthur Guerra de Andrade, professor associado de psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, diz que esse tipo de conteúdo é um risco não só para jovens que podem ter percepções distorcidas do álcool, mas também pode servir de gatilho de recaída entre alcoolistas.
“Alguns estudos mostraram que o comportamento de beber solitário está associado ao uso nocivo de álcool e é um hábito comum entre alcoolistas. De certa forma, as lives podem estimular esse tipo de comportamento, principalmente quando mostram influenciadores bebendo de maneira excessiva”, explica.
Para ele, o isolamento social pode ter impactos psicológicos negativos a curto e longo prazo, afetando não apenas quem sofre com a dependência. Pessoas com histórico de transtornos mentais, ou em tratamento, por exemplo, estão mais vulneráveis.
No caso dos dependentes doo álcool, particularmente, o problema aumenta com o afastamento de grupos de apoio e da convivência, e com as mudanças na rotina.
“É importante lembrar que a dependência é uma doença crônica, assim como diabetes, hipertensão ou asma, com momentos de melhora e piora dos sintomas.”
Para evitar a interrupção de terapias, a organização Alcoólicos Anônimos detectou a necessidade de se adaptar e continuar oferecendo espaço para a realização das chamadas “salas”, reuniões abertas a todos que buscam ajuda para o tratamento da dependência do álcool.
“As salas são lugares de acolhimento, onde se cria um espaço de identificação para que seja possível se manter sóbrio”, define Camila Sene, presidente do AA.
Com a pandemia, foi criada uma reunião nacional diária online, sempre às 20h, e que pode ser acessada gratuitamente pelo site do AA (www.aa.org.br/). Além disso, há salas virtuais acontecendo em todas as cidades do Brasil.
Ela conta que, de acordo com os dados atuais do AA, nas últimas quatro semanas foram 2.900 reuniões em todo o país, com 17,9 mil participantes. “Também notamos aumento nos pedidos de ajuda por email, que passaram de 4 a 6 por dia para 10 a 15”.
Quando a quarentena começou, o escritor Felipe (nome trocado), 37, e que desde 2016 frequenta as salas do AA, teve medo. “Foi um curto momento, de uma semana mais ou menos, sem nenhuma reunião e sem saber direito o que estava acontecendo. Tive medo de beber, apesar de não ter tido vontade”, lembra.
“Mas na sala de AA aprendi que a vontade é algo que dá e passa. Então, mantive certo controle emocional. Logo algumas pessoas mais experientes, que frequentam a mesma sala que eu, começaram a organizar reuniões online pelo aplicativo Zoom.”
Hoje, são quatro reuniões fixas por dia. Sóbrio há dois anos e oito meses, ele diz que os encontros o fortalecem, e ajudam a combater o temor de sofrer uma recaída.
“Frequentar reuniões é fundamental para evitar o álcool. Mesmo em recuperação, sem beber, a doença continua progredindo. Não são raros os casos de pessoas que permaneceram sóbrias por anos a fio e que, depois de recaírem, morreram muito rápido.”
Arthur Guerra diz que é importante que aqueles em tratamento para o transtorno da dependência do álcool tenham “cuidado redobrado”, e permaneçam engajados no tratamento.
Além disso, ele ressalta o papel de familiares e amigos, que podem apoiar a continuidade do tratamento, bem como identificar e ajudar em possíveis recaídas.
“O tratamento da dependência é um processo delicado e contínuo e, muitas vezes acontecem recaídas. O paciente não deve se sentir envergonhado ou fracassado”, avalia. “É essencial perceber a recaída como um momento de aprender sobre as dificuldades do indivíduo, avaliar a presença de fatores estressores e reavaliar as estratégias terapêuticas”.
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/05/abuso-de-alcool-e-drogas-tem-alta-na-pandemia.shtml