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Triagens para Projetos de Pesquisa

Carla Cavalheiro Moura, psicóloga e coordenadora do Ambulatório de Dependências Tecnológicas do IPq,  explica o medo de estar perdendo algo (Fomo).  Confira a matéria do Jornal o Estadão.

Dunas douradas, praias de rio, trilhas em montanhas, aves cantando e voando em bandos e… nenhum sinal de celular. Foi assim que passei seis dias das minhas férias durante uma viagem ao Jalapão, no Tocantins. Pode parecer desafiador (e é), mas se no começo a abstinência tecnológica bate forte, logo o tédio de não poder recorrer ao aparelho é substituído por uma sensação de relaxamento e paz. Nenhuma ligação de telemarketing interrompe o bate-papo depois do almoço, nenhuma demanda de trabalho de última hora se sobrepõe à soneca no redário, nenhum problema familiar tira a alegria de curtir uma praia de rio à tardezinha, nenhuma notícia bombástica e urgente atrapalha o sono à noite.

O Jalapão é uma área de difícil acesso, composto por um parque estadual de 1.589 quilômetros quadrados, fazendas e estradas de areia que apenas carros com tração 4X4 conseguem transpor – e, ainda assim, podem encontrar dificuldades. Para visitar as atrações, os turistas costumam contratar pacotes nos quais se hospedam cada dia em uma cidade. Quem opta por esse modelo fica em pousadas simples, e consegue se conectar quando chega dos passeios (mesmo que o sinal não seja dos melhores).

Não foi o meu caso. Optei pelo roteiro da Korubo, no qual a hospedagem é fixa, em um acampamento às margens do Rio Novo, e os deslocamentos são diários. A proposta é fazer de fato uma imersão na natureza, mas com alguns confortos: as tendas têm camas de verdade e banheiro (os banhos são coletivos e têm água aquecida com energia solar).

Nada de deixar o celular carregando na cabeceira da cama e dar aquela conferida antes de dormir: para começo de conversa, as únicas tomadas disponíveis ficam no refeitório, e funcionam graças ao gerador – ligado no fim da tarde e desligado por volta das 21h30. Tampouco há sinal de celular.

No acampamento, tendas têm camas e banheiros, mas nada de tomadas ou sinal de celular
No acampamento, tendas têm camas e banheiros, mas nada de tomadas ou sinal de celular Foto: Adriana Moreira/Estadão

Para não dizer que foram seis dias sem nada de internet, tivemos sinal em alguns momentos esporádicos, como na visita à cidade de Mateiros ou no bar instalado no caminho do Parque Estadual. Nesses dias, a conexão era rápida, não mais do que 30 minutos, o suficiente para tranquilizar a família. Afinal, se no passado para dar notícias era preciso gastar fortunas com interurbanos – o que deixava as comunicações rápidas e espaçadas –, hoje amigos e parentes acompanham cada passo da jornada. Qualquer ausência é vista com estranhamento.

Por que é tão difícil se desconectar?

Carla Cavalheiro Moura, psicóloga e coordenadora do Ambulatório de Dependências Tecnológicas do IPq (Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP), explica que, atualmente, vivemos em uma “sociedade do espetáculo”. “Tudo vira um grande espetáculo. Se não posto, não sou visto, não existo, não fiz.”

Segundo ela, a ansiedade inicial de ficar sem celular se dá por uma série de razões. Uma delas é o Fomo (Fear Of Missing Out), ou seja, o medo de estar perdendo algo. “É uma nova ordem social”, conta. “Como vou ficar de fora e não saber o que está acontecendo no mundo, na minha família?”

Além disso, ela pontua que os algoritmos e aplicativos são feitos para dar prazer ao cérebro. “O tempo todo a gente busca uma distração, um escapismo, de fugir de situações incômodas. O adolescente que fica muito nos jogos eletrônicos, por exemplo, às vezes está num mecanismo de escape por uma família disfuncional ou por não conseguir se relacionar.”

Carla explica que se afastar das redes sociais por um período é positivo, algo que ela costuma sugerir para os pacientes do ambulatório. A psicóloga afirma que não é necessário fazer um detox longo como o que fiz (involuntariamente); dez minutos por dia já são suficientes. “Em algum momento propomos o detox para o paciente entender que a gente fica um pouco sequestrado por essa tecnologia, sem ter o senso crítico.”

Ela cita um estudo publicado recentemente no Journal of Technology in Behavioral Science, que explorou como reduzir o tempo de uso do celular traz melhoras na saúde e no bem-estar do indivíduo em áreas como imunidade, ansiedade, depressão e outros aspectos.

 

“Eu costumo dizer que a gente não tem mais espaços contemplativos, que é o nada. Quando não tem nada, eu crio, eu desenvolvo. O vazio faz com que tenhamos uma vontade de criar”, ensina Carla.

Cinthia Krause, sócia da Korubo, conta que, atualmente, a ausência de internet é uma opção da empresa. “Sou superligada à questão da mobilidade e tudo que ela pode oferecer, mas a dose é muito importante. Esse período de desconexão faz toda a diferença”, diz ela, que graças à tecnologia pode trabalhar boa parte do tempo da Bahia e vem a São Paulo esporadicamente.

“Sabemos que perdemos vendas por causa disso (da falta de internet), mas também que as avaliações positivas que recebemos se dão justamente pela experiência”, admite. “Prefiro apostar no feedback positivo à comercialização.” Segundo ela, a empresa deve inaugurar um novo acampamento nas Serras Gerais, também no Tocantins, em maio, e manterá a mesma proposta de desconexão. “Seria possível ter internet ali, mas preferimos manter o mesmo estilo do original.”

Sem distrações externas, as pessoas do grupo que viajam com a agência criam uma conexão espontânea. Almoços e jantares são estendidos por longos bate-papos, sem interrupções para dar aquela espiadela nas redes sociais ou postar uma foto.

Carla cita uma experiência realizada com dois grupos de amigos: um conversou sem o celular e outro com o celular por perto. Depois, perguntaram como foi a conversa. As pessoas que conversaram com o celular ao lado não conversaram tão fluidamente. “Só de saber que o celular está ali do lado você se distrai. Você não está presente nessa conversa.”

Por que é tão difícil se reconectar?

“Essa é a pergunta de um milhão de dólares”, brinca Carla. Segundo ela, o detox digital ajuda a perceber que existe prazer na vida offline. “A gente tem de ser protagonista do uso e não usuário. O protagonismo digital é algo individual”, observa ela, ressaltando que não demoniza a tecnologia e sabe de todos os benefícios que ela traz. No entanto, a psicóloga defende uma educação digital, com uso saudável da internet. “O telefone celular virou uma extensão da mão. Estamos lidando com algo absolutamente sedutor e engajante. Costumo dizer que a gente vai ter de fazer um caminho inverso para poder trazer para nossa realidade outras formas de funcionar.”

Serras do Parque Estadual do Jalapão: para a psicóloga Carla, há falta de espaço para contemplação nos dias de hoje. “Precisamos do nada para criar”, diz
Foto: Adriana Moreira/Estadão

Na viagem ao Jalapão, a dentista Andrea Rocha, de 51 anos, se desconectou mais que qualquer outra pessoa do grupo: ela esqueceu o celular na cidade de Ponte Alta, na ida, e só recuperou o aparelho na volta. “Foi libertador”, conta. Quando finalmente pegou o celular, foi mais de uma hora respondendo mensagens. “Eu não queria aquilo. Saí do 8 e fui para o 80, um choque de realidade.”

Andrea acredita que se houvesse internet no local, as pessoas não se conectariam umas com as outras e ficariam mais fechadas em suas “bolhas”. Mesmo o marido, que viajou com ela, certamente aproveitaria o tempo livre para trabalhar. “Em vez disso, pudemos caminhar, relaxar. Ele ficou mais leve”, conta.

Admito que, no dia que retornamos a Palmas, antes de pegar o voo de volta para casa, abrir as redes sociais que estavam ali à minha disposição pareceu algo sem sentido. Até agora, não postei as fotos da viagem – a não ser nesta reportagem.

Como fazer um detox digital no dia a dia?

A psicóloga Carla Cavalheiro Moura, do Ambulatório de Dependências Tecnológicas do IPq do Hospital das Clínicas, dá dicas para um detox digital no dia a dia.

  • Vá devagar: Faça o detox de maneira progressiva. Comece com cinco ou dez minutos de desconexão, por exemplo.
  • Equilíbrio: Equilibre momentos online e offline. Leve o papo com os amigos para o presencial.
  • Ambiente: Crie momentos livres de tecnologia ou espaços de desconexão em casa.

Como participar do Ambulatório de Dependências Tecnológicas do IPq do Hospital das Clínicas?

Carla explica que as dependências tecnológicas não se restringem apenas ao uso do celular e incluem também include jogos eletrônicos, streaming, por exemplo. Segundo ela, a questão do transtorno no uso excessivo da tecnologia envolve não apenas o tempo de tela, mas também como afeta a qualidade de vida do indivíduo.

Caso você sinta que precisa de ajuda – ou conheça alguém que precise -, basta se inscrever no Ambulatório dos Transtornos de Impulso pelo WhatsApp 11-99004-6247, de segunda a quarta-feira, das 10h às 16h e sexta das 9h às 15h.

Os inscritos passam por uma pré-triagem e por uma consulta psiquiátrica antes do tratamento, que consiste em participar de 18 seções de terapia em grupo.

https://www.estadao.com.br/viagem/tirei-seis-dias-de-ferias-sem-internet-no-meio-da-natureza-um-spoiler-eu-adorei/