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Triagens para Projetos de Pesquisa

Fábio Salzano, vice-coordenador do Programa de Transtornos Alimentares/Ambulim do IPq,  fala sobre a volta do culto à magreza. Leia a matéria na Revista Ela.

Por Eduardo Vanini

 

Bella Hadid chamou atenção pela magreza extrema na apresentação da Coperni na Paris Fashion Week — Foto: Getty Images

Bella Hadid chamou atenção pela magreza extrema na apresentação da Coperni na Paris Fashion Week — Foto: Getty Images

Esta história começa com um sorriso inocente e jovial. Clicada por Corinne Day, Kate Moss apareceu na capa da revista The Face, em 1990, com as sardas do rosto em evidência e um divertido cocar sobre a cabeça. A imagem fez sucesso e projetou a modelo como a face perfeita para expressar o que fotógrafos de moda europeus almejavam àquela altura: retratar a juventude por um viés mais realista. Bastou um punhado de anos, porém, para que a aparência singela fosse capturada e subvertida por uma estética perversa conhecida como “heroin chic”. Sim, uma referência glamourizada aos usuários de heroína explorada por fotógrafos e editores de moda naqueles anos.

Uma Kate Moss menos sorridente e mais pálida passou, então, a correr o mundo nas campanhas da Calvin Klein. Tornou-se, justamente com essa aparência, estrela grande o suficiente para estampar um ensaio na Vogue britânica, em 1993. Na foto mais famosa, posou diante de uma parede branca, vestindo apenas calcinha e camiseta. A roupa não era o mais importante ali: com o tronco levemente encurvado para o lado, ela colocava o osso pélvico em evidência e mostrava o quão fino eram os seus braços. A magreza esquálida estava oficialmente na moda, assim como o “heroin chic”.

Três décadas se passaram, as redes sociais fizeram do body positive um movimento global e modelos gordas ganharam espaço — ainda reduzidos — em campanhas e desfiles. Os ventos da indústria pareciam finalmente soprar para direções mais democráticas, até que uma sucessão de eventos acenderam alertas: Kim Kardashian abriu mão das curvas que a projetaram para caber num vestido de Marilyn Monroe; calças de cintura baixa voltaram às passarelas e aos guarda-roupas de influenciadores com a hashtag #Y2K, uma ode aos anos 2000; e um remédio ganhou ares de fórmula mágica para o emagrecimento, o Ozempic.

Kate Moss apareci esquálida nas campanhas da Calvin Klein — Foto: Reprodução

Kate Moss apareci esquálida nas campanhas da Calvin Klein — Foto: Reprodução

“Como alguém que trabalha com pesquisa de moda e comportamento, desconfiei assim que surgiu o resgate dos anos 2000”, diz a influenciadora e jornalista Luiza Brasil. “Foi um período muito excludente em termos da diversidade de corpos e racial. A mulher era muito sexualizada, com a aparência de Paris Hilton e a cintura baixa de Britney Spears divulgadas como ideais. Achava que isso não fosse mais voltar.”

Nem todo o mundo, porém, é capaz de elaborar esses sinais, sobretudo os adolescentes. Letícia Schinestsck, que pesquisou o movimento body positive no doutorado e prepara um livro sobre o tema, cita o quão sintomático é o surgimento de hashtags (optamos por não citá-las para não endossá-las), que se espalham pelas redes e exaltam a magreza. Termos que acompanham fotos e vídeos em que dietas absurdas e os mesmos ossos pélvicos exibidos por Kate Moss são destaque. “Se antes houve uma febre de blogueiras fitness, que falavam de ioga, meditação e suco verde, agora sequer usam o discurso do ‘saudável’. Além dos ‘truques’ de emagrecimento, há muitos conteúdos sobre procedimentos estéticos, como meninas tirando gordura do rosto.”

A cintura baixa dos anos 2000 — Foto: Getty Images

A cintura baixa dos anos 2000 — Foto: Getty Images

As últimas semanas de moda no Hemisfério Norte mostraram que as grifes tampouco estão preocupadas com esse comportamento. Em Paris, as poucas modelos gordas ou curvy que haviam ganhado espaço nos últimos anos sumiram dos desfiles (uma das raras exceções foi Precious Lee, na apresentação de Nina Ricci). Em Milão, a Diesel lotou a passarela de camisinhas para falar de infecções sexualmente transmissíveis, mas contratou apenas modelos magérrimos para desfilarem looks que ecoavam a tal cintura baixa dos anos 2000.

Embora não haja um único grande vilão por trás dessa nova onda, alguns motivos são ventilados por quem acompanha o tema. Autora do livro “Gordos, magros e obesos: Uma história do peso no Brasil”, Denise Sant’Anna lembra que, mesmo com os avanços dos últimos anos, o corpo magro nunca deixou de ser o mais valorizado, visto que foi historicamente associado a uma ideia de jovialidade e agilidade. “É tudo um mito, mas é a imagem que fica”, salienta. Ao mesmo tempo, segundo ela, quando se observa as celebridades que têm liderado esse resgate, a presença de pessoas na casa dos 20 anos é mais frequente. “Portanto, parece-me que há uma disputa de mercado em curso. É uma necessidade de se impor com uma nova aparência.”

Kim Kardashian abriu mão das curvas — Foto: Getty Images

Kim Kardashian abriu mão das curvas — Foto: Getty Images

A relação entre corpo e mercado também é mencionada por Beatriz Polivanov, professora de Estudos de Mídia da UFF. “Sempre temos uma cultura hegemônica e outras que são subalternas. Dentro dessa lógica, o padrão é muito vendável. Para chegarmos nesse corpo magro, sem celulite e tonificado, temos que trabalhá-lo. Precisamos fazer procedimentos estéticos, dieta, academia. Portanto, esses ideais movimentam todo um mercado. E isso é mais lucrativo do que o discurso de aceitação.”

A chegada de medicamentos à base de semaglutida às farmácias, como o Ozempic, é um dos sintomas mais recentes dessa lógica. Embora não tenha indicação para o tratamento da obesidade, mas sim para o diabetes do tipo 2, o remédio pode ser comprado sem receita e virou uma febre entre celebridades. Cercado de alertas por parte dos profissionais de saúde, o uso indiscriminado para este fim só tem como impeditivo, até o momento, o preço: varia entre R$ 700 e R$ 1.000.

Precious foi uma das raras exceções em Paris — Foto: Getty Images

Precious foi uma das raras exceções em Paris — Foto: Getty Images

Vice-coordenador do Programa de Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria da USP, Fábio Salzano defende que a venda do Ozempic deveria ser feita apenas sob prescrição médica. “O uso pode causar alterações nos níveis glicêmicos, e as pessoas correm o risco de sofrer consequências do ponto de vista gástrico, como enjoo e vômito”, ressalta. “Embora possam vir a comer menos, serão levadas a um estado de desequilíbrio físico e psicológico.”

Feitos os alertas, ele descarta que um lobby da fabricante do medicamento esteja por trás dessas mudanças e chama atenção para o que vem sendo vendido pela moda internacional. “Ao longo de 30 anos de pesquisa, já atravessamos momentos em que os padrões de beleza eram extremamente emagrecidos. Como houve muitos alertas sobre isso, ocorreu uma adequação na moda e na mídia. Mas, de uns anos para cá, os padrões apresentados lá fora voltaram a ser preocupantes. As modelos parecem desnutridas.”

Luiza Brasil considera estética dos anos 2000 opressiva — Foto: Divulgação/Vitor Manon

Luiza Brasil considera estética dos anos 2000 opressiva — Foto: Divulgação/Vitor Manon

Aos olhos da influenciadora Luiza Brasil, isso indica que a adesão dessas marcas à diversidade de corpos em algum momento nunca foi ideológica. “Foi mais uma estratégia mercadológica que parece, de alguma maneira, ter saturado. Está tudo cada vez mais padronizado e branco também. Pessoas que tinham medo de cancelamento não têm mais essa preocupação.”

Rosanna Naccarato, professora de projetos em design de moda do Senai Cetiqt, acrescenta que esse quadro também dá a impressão de que a responsabilidade da inclusão ficou restrita a jovens estilistas. “A alta-costura parece querer se reinventar e absorver jovens compradores, que se espelham em personalidades e estilos de vida ousados, assim como fazem com seus corpos. A magreza extrema ressurge como uma performance. O que vimos nos últimos desfiles foi um retrocesso”, avalia.

As consequências dessa pressão estética já bateram na caixa de comentários da influenciadora e modelo plus size Bia Gremion, que notou a piora no cenário. “Numa postagem recente, recebi uma enxurrada de comentários de ódio, algo que não acontecia há um bom tempo. Percebo uma obsessão por academia e pelo corpo sem qualquer questionamento. O esforço não é pela saúde, mas para se tornar cada vez mais próximo do padrão”, relata.

Bia sente o aumento do ódio nas redes — Foto: Reprodução/Instagram

Bia sente o aumento do ódio nas redes — Foto: Reprodução/Instagram

Há também, segundo ela, um aumento da desmotivação entre os seguidores. Embora o body positive tenha sido criado por pessoas gordas, a influenciadora lembra que o movimento acabou monetizado por marcas e, consequentemente, esvaziado de propósito. “Passamos seis anos falando de uma pauta, mas não conquistamos o que é realmente importante. Não garantimos, por exemplo, políticas públicas mais estruturadas de acessibilidade e direitos, antes que isso tudo voltasse a acontecer”, lamenta.

Entre avanços e regressos, a boa notícia é que pessoas como Bia não estão dispostas a arredar os pés dos solos conquistados. Essa é, de acordo com a escritora Denise Sant’Anna, a diferença crucial daqueles anos 2000 da cintura baixa. “A mudança está nas redes sociais. Antes, o modelo vinha de cima, quer você quisesse ou não. Hoje, são múltiplos e efêmeros. Aparecem e desaparecem muito rápido.”

https://oglobo.globo.com/ela/gente/noticia/2023/04/a-volta-do-culto-a-magreza-na-moda-e-nas-redes-acende-alertas-sobre-a-saude.ghtml