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Táki, Cordás, do IPq, fala sobre transtornos alimentares, em entrevista a Revista Babel/USP.

O medo da balança

Como transtornos alimentares roubam jovens de sua autonomia em seus anos de formação mais cruciais

Por Lara Paiva

Versão em áudio:

Aos 14 anos, meninas costumam ter uma série de preocupações, desde dramas de namoro à transição para o ensino médio. Mas Luana*, não: a partir do momento em que acordava, um pavor ditava todas as suas atitudes ao longo do dia: o medo de ganhar peso.

Ela se pesava todos os dias, anotava medidas, analisava rótulos com minúcia. “Eu perdi o começo da minha adolescência toda com isso. O mundo passava na minha frente, e eu só pensava no quão magra queria estar”, contou.

Foram três anos de transtorno alimentar (TA) — que começou aos 13 — até que Luana recebesse o diagnóstico de anorexia nervosa e iniciasse o tratamento. Mas essa não é a história de uma só menina: no Brasil, cerca de 15 milhões de pessoas apresentam algum TA, segundo Táki Cordás, coordenador do programa de transtornos alimentares do Hospital da USP.

Especialistas definem transtornos alimentares como condições psiquiátricas, de origem multifatorial, que se manifestam por meio de padrões alimentares inadequados. Esse consumo alterado compromete a saúde física e mental do paciente.

É comum que esses transtornos venham acompanhados de outras condições, como distúrbios de imagem corporal. A correlação com outros quadros psiquiátricos tem sido cada vez mais estudada.

No caso de Maria*, a relação com a comida sempre foi atravessada por questões de autoimagem. “Eu era gordinha, tinha um sobrepeso considerável que eu queria perder. Mas não por questão de saúde. Era por estética”.

Para se encaixar nesse padrão, ela passou a viver ciclos alimentares extremos. Ou comia demais, para lidar com a insegurança e o sofrimento, ou passava longos períodos — inclusive dias — sem comer, como forma de compensação.

Entre os transtornos alimentares mais comuns estão a anorexia nervosa, marcada pela busca obsessiva por emagrecimento; a bulimia nervosa, que envolve episódios de compulsão seguidos de comportamentos compensatórios como vômitos, jejuns e exercícios extenuantes; e o transtorno de compulsão alimentar, no qual os episódios de excesso não são seguidos de compensação.

Luana começou a praticar o que os médicos chamam de “comer transtornado” aos 11 anos. Sua família percebeu cedo, mas não interveio — pelo contrário: “Quando minha mãe percebeu o quão pouco eu estava comendo, pareceu ficar feliz que eu finalmente estava ‘focada na dieta’”, contou. “Sempre tive um corpo diferente do da minha mãe e das minhas primas. Sempre fui motivo de piada, e eventualmente cansei”

No caso das quatro fontes que falaram à reportagem, um padrão se repete. Todas desenvolveram o distúrbio na pré-adolescência, entre os 11 e 13 anos. Segundo estudo da Universidade Estadual de Londrina, cerca de 30% das meninas entre 6 e 18 anos possuem um TA.

A nutricionista Letícia Amélia, que realiza especialização em transtornos alimentares no Programa de Transtornos Alimentares (Ambulim) do Hospital das Clínicas da USP, ressalta que os sintomas podem variar bastante. Mas há sinais que merecem atenção, sendo o principal uma perda de peso significativa de forma repentina.

Outros sintomas incluem a preocupação excessiva com o peso e a necessidade de estar sempre controlando-o; medo ou pavor de engordar; períodos de jejum prolongado; dietas restritivas, como cortar grupos alimentares ou contar calorias; prática de exercícios físicos de forma extenuante; e consumo de medicamentos para emagrecer, desde Ozempic a inibidores de apetite ou até laxantes.

“Alguns desses sintomas, para muitas pessoas, podem ser considerados comuns ou normais. Algumas famílias podem ver como aceitáveis, mas não são. São sinais de alerta para que a pessoa busque ajuda”, afirma Letícia. Ela reforça que não é preciso apresentar todos os sintomas para buscar tratamento. A orientação é que o paciente procure ajuda quando a relação com a comida ou o corpo causa sofrimento.

Embora as causas do TA sejam complexas, estudos apontam correlação com o uso excessivo de redes sociais e a comparação com padrões idealizados. Uma pesquisa da Universidade da Califórnia em São Francisco, realizada em 2021, mostrou que cada hora adicional de exposição às mídias sociais aumenta em 62% o risco de um jovem desenvolver sintomas de TA em um ano.

Érica, que enfrentou o distúrbio na adolescência, aponta as redes como um agravante. Quando decidi que iria emagrecer, a primeira coisa que fiz foi ir ao Pinterest e salvar várias [imagens de] mulheres extremamente magras”, contou. “Eu tinha em mente que, toda vez que eu sentisse vontade de comer, eu iria olhar para essas imagens”.

Mais recentemente, Érica precisou se afastar das redes sociais por meses, após perceber o malefício que conteúdos aparentemente inofensivos poderiam trazer.

Nas redes sociais existem comunidades onde meninas compartilham dicas de como emagrecer com dietas perigosas, induzir o vômito e esconder o transtorno das pessoas ao seu redor.

Em algumas mídias destinadas a jovens, o TA não é visto como problemático, mas como bonito. São muitos os filmes e séries que abordam a questão de forma superficial ou até prejudicial. Um dos maiores exemplos é a série Skins (2007-2013). Nela, a anorexia da personagem Cassie é vista como uma de suas peculiaridades – da mesma forma que o uso de drogas na adolescência também é vista como um “traço poético” na produção.

A romantização é um dos empecilhos à busca do tratamento. No caso de Carla*, quando as pessoas percebiam e comentavam o quão pouco ela comia, ela se sentia feliz: “[Era] como se estivesse validada, fazendo a coisa certa”.

“Eu não consegui manter uma ingestão de calorias baixa como eu queria [a meta era 900 calorias por dia, 500 calorias abaixo do mínimo indicado por médicos], tinha falta de controle. Comecei a compensar vomitando. Antes, quando sentia que tinha passado do limite ou extrapolado, mas, com o tempo, virou um hábito depois de tudo que comia”.

Mas erra quem pensa que o TA é algo novo. Mulheres sempre foram o bode expiatório do capitalismo – e sua insegurança, a força motora de uma indústria de beleza multi bilionária que, a preço de faturar a qualquer custo, mantém padrões estéticos restritos e, por vezes, inalcançáveis.

Nos anos 1990, a moda nas passarelas da alta moda era o heroin chic, ou seja, modelos tão magras a ponto de parecerem dependentes químicos em heroína. Já nos anos 2000, alguns dos best-sellers das bancas de jornais eram revistas relacionadas ao universo da dieta e do emagrecimento, como a Boa Forma, da editora Abril.

“Crescemos vendo essa indústria movimentar bilhões de dólares com promessas de corpos magros e totalmente inatingíveis e irreais”, afirma Letícia. “E hoje, com as redes sociais – principalmente o TikTok – essa questão aparece de forma ainda mais intensa, mas mascarada em forma de humor. Vemos trends como ‘magras, magras, magras’, que escancaram a volta da supervalorização da magreza extrema”.

Letícia recomenda monitorar com cuidado o conteúdo consumido nas redes sociais para evitar comparações. Ela recomenda perfis que promovam a saúde real, a autoestima e o acolhimento –, além de enfatizar a importância de evitar contas que reforcem padrões irreais, dietas e o culto hiperbólico ao corpo magro.

Ao mesmo tempo em que temos mais acesso à informação do que nunca sobre temas como alimentação e nutrição – na internet, na televisão, nas redes sociais e em publicações –, a quantidade de desinformação circulando continua alta. “Nunca estivemos tão doentes em relação à comida e à imagem corporal. O excesso de informação, muitas vezes sem embasamento, gera ainda mais confusão, julgamento e sofrimento”, opina Letícia.

“O impacto é muito nítido. Vemos crianças odiando seus corpos, mulheres jovens fazendo uso desenfreado de medicamentos como Ozempic, Mounjaro e inibidores de apetite, e por aí vai.”

Com o surgimento do movimento body positive, que rechaça os padrões estéticos de beleza predominantes, muitos pensaram que o cenário mudaria. Modelos plus size passaram a aparecer em passarelas, enquanto algumas campanhas de grandes marcas, como Calvin Klein e Victoria’s Secret, antes associadas ao “corpo perfeito”, foram estreladas por pessoas gordas.

Mas há quem creia que o movimento saiu pela culatra. Maria diz que o problema foi que, ao invés de inclusão plena, a escala foi invertida, com muitas pessoas enaltecendo a beleza das mulheres cheias e ridicularizando a das magras. Ela aponta, ainda, que, mesmo dentro dessa diversidade, algumas coisas permanecem iguais. O rosto das modelos, por exemplo, era tido como “padrão”, isto é, nariz fino, olhos claros e um corpo que, mesmo mais cheio, era torneado.

“Criamos pressão estética dentro de algo que era para ser uma celebração à diversidade”, afirma. “Isso fez as pessoas desencanarem do movimento. Não era sobre abraçar as diferenças, mas sobre ter outros padrões”.

Essa é uma preocupação compartilhada por Carla, que diz que as próprias “pioneiras” do movimento cederam à pressão estética. “A Meghan Trainor, que ficou famosa com uma música sobre amar o corpo mais cheio e com curvas, hoje está magrinha. A mesma coisa aconteceu com a [influenciadora] Alexandrismos, a [atriz] Barbie Ferreira”.

Segundo profissionais da área, o tratamento mais indicado envolve uma equipe multidisciplinar, composta principalmente por nutricionista, psicólogo e psiquiatra — de preferência, todos especializados em transtornos alimentares.  A psicoterapia ajuda a lidar com a sensação de impotência diante da comida. O nutricionista não prescreve dietas restritivas, mas auxilia na desconstrução de crenças e traz informações práticas. Já o psiquiatra é essencial para diagnóstico e acompanhamento, sobretudo em casos com comorbidades.

Existem serviços especializados e gratuitos que podem servir como ponto de partida no tratamento de transtornos alimentares. Além do Ambulim, onde Letícia trabalha, há a AstralBR (Associação Brasileira de Transtornos Alimentares), que é voltado à prevenção e à conscientização, e disponibiliza materiais educativos, grupos de apoio online e redes de profissionais especializados em várias regiões do Brasil. Mais informações no portal.

Apesar de o grupo de apoio não substituir o tratamento, ele pode ser um valioso complemento: “Meu tratamento só começou a andar quando comecei a me reunir com as meninas do grupo”, conta Carla. “A comunidade pode atrapalhar, mas também pode ajudar. Foi importante esse espaço com gente que não achava bonito, que queria mudar isso”.

Segundo Patrícia Xavier, psicóloga voluntária do Astral, os grupos proporcionam um momento de escuta ativa e de acolhimento. Eles ocorrem online, para que pessoas que moram em lugares onde não há atendimento ou profissionais especializados possam participar.

“Essa troca é muito interessante, porque por meio da escuta de outro com um problema parecido, você não se sente sozinho no mundo e consegue acolher alguém com um problema parecido”, conta Patrícia. “É muito gratificante ouvir o relato de quanto o grupo ajuda”, continua. “Não tem dinheiro que pague a evolução [das pacientes]. Elas dizem se sentirem confortáveis de expor coisas que, muitas vezes, nem tinham coragem de falar”.

Luana disse que, por anos, acreditou que todos os seus problemas desapareceriam quando ela atingisse 40 quilos. “Hoje, tenho quase o dobro disso, e não consigo explicar a liberdade que sinto de nem ter uma balança [em casa], de não seguir nas redes sociais uma pessoa que me faz querer procedimentos e cirurgias e que vive em função da beleza”, conta.

Letícia conclui: “[As redes sociais e a sociedade] querem que acreditemos que só vamos ser felizes se perdemos peso. E a felicidade é muito mais do que a magreza, do que um tamanho de calça jeans ou um número na balança. Temos hobbies, família, amigos, comidas preferidas, lugares que nos marcam, memórias, experiências, conhecimentos… Resumir a felicidade a um corpo magro só alimenta a indústria que quer que a gente pense isso”.

* – pseudônimo para preservar intimidade da fonte

Fonte: https://babel.webhostusp.sti.usp.br/?p=1903