Mário Louzã, do IPq, fala sobre delírio a dois, em entrevista na Revista Galileu. Confira!
Delírio a dois: síndrome que dá nome ao filme do Coringa existe na vida real
Nome do filme estrelado por Lady Gaga é também uma condição clínica, que acontece quando uma pessoa com transtorno psicótico induzido consegue compartilhar seus delírios com outra. Entenda
Por
Tainá Rodrigues
A sequência “Coringa: Delírio a dois” estreia nesta quinta-feira (3). E os trailers do filme mostram que a Arlequina (Lady Gaga) apresenta os mesmos delírios que o Coringa (Joaquin Phoenix). Mas você sabia que isso realmente pode acontecer fora das telas?
A GALILEU falou com um especialista para explicar o que é a síndrome do compartilhamento de delírios. Entenda abaixo.
O delírio a dois (do francês Folie à deux), ou transtorno psicótico induzido é uma síndrome rara e acontece quando alguém com quadro psicótico delirante induz outra pessoa a ter os mesmos delírios. O sujeito responsável por compartilhar o delírio pode ter um quadro semelhante ao de esquizofrenia.
“O quadro [do indivíduo] primário pode ser uma esquizofrenia, uma psicose ou pode ser um transtorno delirante persistente”, disse Mario Rodrigues Louzã Neto, médico formado pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em Psiquiatria pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).
O transtorno delirante persistente é considerado uma doença grave, em que a pessoa tem recorrência de delírios e não consegue distinguir a realidade da imaginação. “O transtorno delirante persistente é uma forma parecida com a da esquizofrenia, com poucas características diferentes, como se fosse uma espécie de primo da esquizofrenia”, explica.
De acordo com Louzã Neto, o delírio é caracterizado como um conjunto de ideias que são incompatíveis com a realidade. “Por exemplo, a pessoa acha que a polícia está perseguindo ela porque ela fez alguma coisa, ou acha que os vizinhos instalaram câmeras dentro da casa dela para tomar conta dela, ou que ela tem um chip dentro da cabeça implantado por algum ser extraterreno”, relata.
Por outro lado, a pessoa secundária, que passa a reproduzir os delírios, tem como característica a vulnerabilidade emocional e psíquica. “Essa pessoa número dois tem algumas fragilidades, sejam emocionais, sejam psiquiátricas, algum tipo de transtorno de personalidade, às vezes uma limitação intelectual e uma espécie de sugestionabilidade alta. [Isso] faz com que o indivíduo número 2 acredite na número 1”, afirma Neto.
O especialista ainda acrescenta que o indivíduo secundário, induzido a ter quadros delirantes, tem uma relação muito próxima com o indivíduo primário — inclusive de dependência psíquica. “Em geral, essas duas pessoas têm um vínculo de dependência, principalmente a [pessoa] número 2 em relação a número 1. Não é uma coisa que se espalha assim para qualquer um, porque as outras pessoas [ao redor] conseguem manter a crítica de que aquilo é um delírio”, evidencia Neto.
“Então, isso acontece nessa situação muito peculiar em que a segunda pessoa tem alguma fragilidade psíquica, que a torna mais vulnerável e a faz acreditar no que o mentor delirante está falando”. De maneira geral, o delírio a dois fica limitado a duas pessoas e normalmente acontece entre pessoas que vivem juntas, em um cenário de interdependência emocional do indivíduo secundário em relação ao primário. O transtorno pode acontecer entre pessoas com vínculos familiares e entre casais também, desde que exista dependência emocional e psíquica.
Apesar da semelhança do transtorno com o que é apresentado no filme, o especialista reforça que existem diferenças. “Isso [o transtorno] depende de uma relação, de um vínculo, de um convívio muito junto e intenso entre as duas pessoas, que não é um vínculo esporádico”, ressalta Neto.
“Para que a pessoa delirante induza isso, é um processo bastante longo, não é uma coisa de um dia para o outro. Depende muito da vulnerabilidade e da fragilidade psíquica da segunda pessoa. Mas. certamente, demora meses, não é alguma coisa que aconteça em pouquíssimo tempo”.
O psiquiatra ainda reforça que comumente as ficções retratam transtornos e síndromes. “O cinema aproveita muito essas situações [psíquicas] e faz uma espécie de licença literária, que muitas vezes não é a realidade da psiquiatria, mas que pega um pouquinho da ideia original”, reforça.
Tratamentos
Normalmente, é necessário tratar a pessoa primária, mentora do delírio. E, na maioria das vezes, o distanciamento físico é capaz de melhorar o quadro delirante para quem “copiou” o comportamento. ”O delírio da segunda pessoa tende a desaparecer porque ela própria não criou o delírio, ela simplesmente passou a acreditar no delírio da outra”, expõe Neto.
“É que muitas vezes, a gente não consegue fazer essa separação física entre as duas pessoas porque elas moram juntas ou têm uma vinculação muito próxima. Mas, quase sempre, o tratamento envolve você ter essas duas pessoas distanciadas fisicamente, porque aí para de haver a indução”, acrescenta.
Caso relatados
Um estudo do Jornal Brasileiro de Psiquiatria evidenciou como o delírio a dois funciona com o relato de caso de uma mulher de 51 anos. Ela alegava ser alvo de um eminente assassinato, inclusive por parte de seus familiares. Ela foi levada ao psiquiatra por seu marido e, apesar do comportamento de desconfiança, seu humor e sua percepção estavam normais.
Antes dos delírios da paciente, o casal estava planejando viajar para a Europa. Porém, próximo à viagem, a mãe dela, de 81 anos, revelou que ela seria morta caso prosseguisse com a viagem. Com isso, a viagem foi cancelada, e a mulher passou a delirar — por influência da mãe.
Em uma ocasião anterior, a mulher engravidou, e sua mãe afirmou ter maus presságios em relação ao bebê. A paciente passou a ter um quadro de psicose puerperal em relação ao filho, acreditando que ele era um espírito ruim, e tentou matá-lo.
A mãe e a filha não viviam juntas, mas mantinham uma relação próxima. A mãe se negou a ter assistência psiquiátrica, mas a filha foi medicada e teve que se afastar de sua genitora. Após 14 dias, a mulher não apresentava nenhum quadro psicótico. Após a retirada de remédios, o marido relatou que a paciente permaneceu sem sintomas, e que o convívio com a mãe foi reduzido.