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João Maurício Castaldelli,, pesquisador do IPq, fala sobre  gerenciamento e estratégias primárias, em casos de catástrofes, e que a implementação de cuidados contínuos é essencial para uma abordagem completa em saúde mental, em entrevista ao Jornal da USP.

Tragédia no RS: o desafio da saúde mental após a catástrofe

Escassez de evidências sobre cuidado mental durante desastres indica despreparo do sistema de saúde

  Publicado: 10/07/2025 às 9:10 Texto: Gabriel Nagino * Arte: Gustavo Radaelli**

Mais de um ano após as enchentes no Rio Grande do Sul (RS), sequelas psicossociais ainda permeiam a população gaúcha. Em um primeiro momento, o manejo da emergência foi voltado para a atuação clínica, mas também era urgente o cuidado psicológico das vítimas. Ao mesmo tempo, devido à sobrecarga do sistema de assistência social, uma parcela significativa das equipes mobilizadas para apoio à saúde mental não possuía treinamento específico para desastres. Como essas pessoas trabalharam na linha de frente?

Essa é a pergunta que pesquisadores da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) procuraram responder, em parceria com a USP e a Universidade de Brasília (UnB), por meio de um levantamento de relatos de experiência.

“A enchente afetou todo o nosso senso de pertencimento, inundou o que conhecíamos como cidade, como referencial e como tecido social”, relata Joana Correia, vice-coordenadora do curso de Psicologia da UFCSPA que atuou em abrigos

João Maurício Castaldelli, docente do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), participa do Grupo de Interesse Especial em Geopsiquiatria, estudando como os vetores geopolíticos atravessam fenômenos de saúde mental. “Quando a catástrofe se iniciou, a equipe da UFCSPA se voltou completamente para um trabalho assistencial. […] Então, eu falei para Joana: ‘Você não quer registrar isso de alguma maneira?’”

A ideia, mesmo que de longe, foi sistematizar as vivências do período, a fim de impedir o esquecimento da tragédia e aprimorar as políticas de apoio.

Os colaboradores da USP montaram um instrumento de coleta de dados qualitativo, via Google Forms, que propôs perguntas disparadoras para os profissionais dissertarem sobre sua atuação nas enchentes.

As perguntas foram divididas entre diferentes eixos, como experiência prévia, descrição de atividades, desafios enfrentados, resultados das intervenções, percepção do trabalho, aspectos organizacionais e de coordenação.

“O conhecimento científico é construído a partir da interação e do envolvimento dos indivíduos que estavam vivendo esse processo. Não foi uma abordagem neutra: nós entendemos que as pessoas estavam absolutamente enraizadas nas experiências vividas, e justo por isso estavam produzindo conhecimento” – Joana Correia

Considerada a maior catástrofe ambiental já vivida pelo Estado, as enchentes deixaram um rastro de 180 mortes e 25 desaparecimentos ainda inconclusivos. Danos materiais fragilizaram a vida de mais de 2,4 milhões de habitantes — e danos imateriais ainda são sentidos na memória coletiva de mais de 470 cidades.

As chuvas desencadearam uma crise no sistema de saúde pública. Apenas em Porto Alegre, 42% das unidades de saúde interromperam suas operações devido a danos à infraestrutura ou a desafios logísticos. Centenas de profissionais e voluntários se organizaram para auxiliar as pessoas afetadas: abrigos improvisados desafiaram os protocolos existentes, que muitas vezes não suportavam a dimensão do desastre.

O acolhimento psíquico

A saúde mental não costuma ser priorizada em contextos de desastre, e essa lacuna pode comprometer de forma duradoura a recuperação dos indivíduos. Joana reforça que intervenções psicológicas em situações de crise precisam ser bem estabelecidas para evitar a patologização – tratar como doenças as respostas esperadas aos eventos traumáticos – e a medicalização excessiva.

Castaldelli explica que três complicações psicológicas foram mais observadas no acompanhamento. Inicialmente, a reação aguda ao estresse engloba sintomas momentâneos, como ansiedade, medo e desespero, confusão mental, efeitos dissociativos e dificuldades de concentração.

O transtorno de ajustamento ocorre quando a vítima desenvolve uma alteração psíquica temporária em decorrência do trauma, como um quadro depressivo ou ansioso. São comuns os sentimentos de desesperança, angústia, irritabilidade e nervosismo.

Já o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) é diagnosticado posteriormente, quando a vítima tem lembranças e revivências por mais de um mês após o evento de gatilho. Segundo João Castaldelli, ele pode causar sintomas como flashbacks e pesadelos, humor negativo (como culpa e raiva) e mudanças no estado de alerta (como hipervigilância e insônia).

“Além da falta da moradia, de entes próximos que tinham falecido ou estavam desaparecidos, estávamos em um contexto de falta completa de controle social – Joana Correia

Junto com as águas, emergem as tragédias de cada um. Joana conta que as vítimas traziam demandas diversas: um caso comumente enfrentado, por exemplo, foi a abstinência de substâncias psicoativas, pois pessoas com dependência química perderam o acesso a um vício.

Outro exemplo são relatos de violência doméstica e abuso que surgiram nos abrigos: segundo a psicóloga, o contexto de fragilidade impulsionou as mulheres a procurarem ajuda. “Junto [com o desamparo], surge uma trama de vulnerabilidades e de situações prévias que ali se expressavam mais ainda, de forma desigual”, comenta Joana.

Vítimas que já tinham transtornos mentais expressaram maior dificuldade de lidar com a situação. Segundo Castaldelli, a ideia de que a depressão é uma doença exclusivamente mental é uma falácia, pois o transtorno é atravessado por diversas questões coletivas — o que ficou muito claro no contexto do RS. “As camadas mais pobres são justamente as que têm maiores níveis de transtornos como depressão e ansiedade, mas não têm o mesmo acesso [a diagnósticos]”, comenta. Apesar das lacunas em treinamento e estrutura, os relatos revelam que, muitas vezes, ações simples de escuta eram extremamente efetivas.

O que os profissionais sentiram?

Além de abordar a saúde mental da população, o artigo revela os sofrimentos dos profissionais: mesmo aqueles que possuíam treinamento sentiam-se emocionalmente despreparados para lidar com a magnitude do desastre.

Muitos experienciaram impotência devido à incapacidade de solucionar os conflitos que surgiam. “Era muito difícil estar no front e era muito difícil não estar. Eu chegava em casa, eu não conseguia relaxar, eu queria voltar; eu estava lá e eu queria vir para casa”, relata Joana. “Era angustiante saber que tinha alguém que não conseguimos abrigar, algum familiar que não havia sido encontrado.”

A pesquisadora explica que esse impacto psicológico afetou a própria disposição nos atendimentos e a qualidade do cuidado oferecido. Acima de tudo, os profissionais também eram sujeitos na situação do desastre: “Alguns não conseguiam acessar suas próprias casas ou também estavam sem contato com os seus familiares”, reflete.

Como melhorar o gerenciamento

O espaço de resgate em que Joana atuou se dividia em “zonas”: a sala vermelha, para emergências fisiológicas e medicação; a zona amarela, para suporte psicológico e farmacológico; e, por fim, os abrigos com alimentação. “Para essa maquinaria funcionar foi fundamental a união de saberes e o trabalho multiprofissional.”

A fragmentação entre forças públicas, privadas e voluntárias dificultou o gerenciamento: em certos locais, havia excesso de intervenções; em outros, ausência. O improviso no manejo da emergência evidencia uma precariedade estrutural do sistema público de saúde mental muito anterior ao desastre.

Os autores frisam que fortalecer treinamentos padronizados de apoio psíquico agudo é essencial. Joana também observa que existem abordagens preventivas que podem ser aplicadas, como práticas comunitárias mais sustentáveis e psicoeducação das populações.

Contudo, esses avanços não se alcançam na microesfera. Segundo Castaldelli, as enchentes de 2024 não foram um desastre natural, mas uma catástrofe prevista, resultado de anos de negligência em políticas públicas e gestão de riscos. Minimizar desastres futuros depende de investimentos integrados, desde a esfera ambiental até o gerenciamento de recursos em saúde. “É difícil, pois não gera resultado imediato; demanda um exercício de previsão, entendimento de riscos e conscientização — da população e dos governantes.”

A continuidade do apoio

Além das estratégias primárias, a implementação de cuidados contínuos é essencial para uma abordagem completa em saúde mental. O luto, por exemplo, é frequentemente negligenciado nos processos de recuperação de desastres.

“Enquanto todas as outras equipes já tinham encerrado sua participação, nós seguíamos indo em abrigos, porque simplesmente não tinha quem assumisse”, relata Joana. As enchentes ocorreram em abril e maio, e a maioria das atividades nos abrigos se encerrou em junho, mas a equipe da UFCSPA permaneceu em atividade até o mês de setembro.

O trabalho incluiu instruções às vítimas sobre seus direitos e sobre como recorrer a apoio mental nos aparatos da rede pública, mas os pesquisadores enfatizam que a carência prévia do sistema público de saúde mental prejudicou a continuidade dos atendimentos.  “É muito importante manter cuidados terapêuticos tanto na reabilitação psicossocial como na reconstrução do tecido comunitário, para restaurar a autonomia e o empoderamento das comunidades”, conclui.

O artigo Experience report: Mental health interventions during the 2024 floods in Rio Grande do Sul, Brazil está disponível on-line e pode ser lido aqui.

Mais informações: jmcmaia@usp.br, com João Maurício Castaldelli; jcmnarvaez@ufcspa.edu.br, com Joana Correa

*Estagiária sob orientação de Fabiana Mariz

**Estagiário sob orientação de Moisés Dorado

Fonte: https://jornal.usp.br/ciencias/tragedia-no-rs-o-desafio-da-saude-mental-apos-a-catastrofe/