Débora Chou, do IPq, fala sobre ecoansiedade em matéria do UOl.
Meio Ambiente
Crise climática cria ecoansiedade: ‘Não saía da cama, tomei antidepressivo’
Heloísa Barrense Do UOL, em São Paulo
22/06/2024 04h00
Ondas de calor, chuvas intensas e alagamentos. Eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes criam novas preocupações —e intensificam as que já existiam. Essas aflições ganharam o nome de “ansiedade climática” ou “ecoansiedade”.
A condição foi descrita pela Associação Americana de Psicologia como “medo crônico da destruição ambiental”.
Diferentemente do transtorno de ansiedade, que consta na CID (a classificação oficial de doenças), a ecoansiedade não está, até agora, definida na literatura médica, mas é uma realidade.
Ao UOL, três pessoas na linha de frente contra mudanças climáticas contam como a situação afeta a saúde mental.
‘Tive crise de depressão’
Alexandre Araújo Costa, 54, físico e climatologista no Ceará
“Na década 1990, já existia uma discussão sobre o aquecimento global, o tema estava no radar. Com o terceiro relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), houve fortes indícios de que o risco era real e tendia a aumentar.
Mergulhei no tema e falei: ‘Isso é algo muito relevante, precisamos examinar’.
Na época, morava nos Estados Unidos, mas retornei ao Brasil e, em 2007, parecia que o tema tinha de fato entrado no radar da sociedade. Havia uma procura para falar sobre e dei muitas entrevistas no Brasil.
O climatologista Alexandre teve crises de depressão que ele associa às descobertas científicas ligadas ao aquecimento global
Imagem: Arquivo pessoal
Tinha uma sensação de que, apesar de o problema ser grave, havia uma mobilização para que fosse resolvido, mas não foi o que a gente viu nos anos seguintes —foi o contrário, o retrocesso.
No meu trabalho, surgiu certa vez um pedido de parecer sobre uma usina termelétrica de carvão no Ceará. Dei um parecer negativo, mas o texto foi ignorado. Foi minha primeira ‘porrada’.
“Pessoas que não acreditavam que o aquecimento global existia começaram a ganhar visibilidade, na TV e na internet. Me chamou a atenção o negacionismo climático, que era forte nos EUA e começou a ser importado para o Brasil”.
Decidi criar um blog (“O que você faria se soubesse o que eu sei”), em uma tentativa de sistematizar argumentos contra esses negacionistas. Acreditava na racionalidade da nossa espécie e que nossa autopreservação falaria mais alto.
“Em 2014, tive uma crise de depressão. Já havia tido episódios depressivos no passado, mas nem de longe tiveram gravidade semelhante. Tive de tirar licença médica, me medicar e foi muito doloroso”.
Um episódio marcante foi quando tive de participar de um simpósio sobre a crise ecológica. Não conseguia sair da cama para ir e perdi o voo. Estava devastado, mas consegui ir no dia seguinte.
Na hora das perguntas, uma senhora disse: ‘Professor, sabendo tudo isso, como você dorme? Como consegue colocar a cabeça no travesseiro?’ Estava com a bagagem da viagem ainda, então simplesmente abri a mala e tirei minha caixa de antidepressivos e mostrei.
“Minha sensação é meio como a dos cientistas daquele filme ‘Não olhe para cima’, da Netflix.”
Na época, cheguei à conclusão de que havia uma dificuldade grande dos psicólogos de lidar com o problema. Eles não entendiam como a emergência climática afetava nossa saúde mental.
Provavelmente fui um caso de ansiedade climática ou depressão climática. Não era atingido diretamente, como nas enchentes, mas estava vendo tudo chegando.
“Precisaremos criar uma rede de suporte de saúde mental. São comunidades desfeitas, crianças sem brincar com o vizinho, idosos com problemas de saúde, e povos que perderam o território. Tudo isso está mexendo e mexerá com a cabeça das pessoas”.
Muitas ilusões se foram, mas gosto de dizer que estou nesse combate como o bombeiro numa terra arrasada. É o amor aos meus três filhos, às pessoas, à biodiversidade o que me move.
‘Quando tem chuva, tem ansiedade’
Jéssica Lene da Silva Santos, 25, estudante de pedagogia e educadora no Rio
“Nasci em Manguinhos, zona norte do Rio, e o bairro é conhecido por enchentes recorrentes. Desde pequena, ouvia histórias —e sempre vi acontecendo. Lembro de ir à casa de parentes e ver que não colocavam móveis no primeiro piso, só no segundo andar. Percebi como essas coisas influenciam até na forma como a casa é planejada.
“Em fevereiro do ano passado, tivemos uma enchente tão grave que entrou na minha casa. Moro em um lugar alto, onde a água não costuma entrar. Essa situação me fez perceber o quanto eu já estava nesse contexto da emergência climática”.
Percebi que não tinha mais como não falar sobre clima porque aquilo estava me afetando diretamente.
Aqui em Manguinhos sempre estamos na expectativa porque o rio transborda, as pessoas ficam ilhadas e não conseguem se deslocar.
Jéssica Lene é moradora de Manguinhos e teve a casa inundada no ano passado
Imagem: Arquivo pessoal
“Quando tem uma chuva forte e o aumento do nível do mar, é bem provável que aconteça enchente e isso gera ansiedade. Não tem como a gente ficar tranquilo. Você já sai para trabalhar com o pensamento de ‘será que vai entrar água?”
Tento cuidar dos que estão próximos de mim, mas sei que é impossível resolver um problema estrutural. E, geralmente, quem está na linha de frente não tem opção de cuidar da saúde mental, mas a gente tenta recorrer à terapia, até porque precisa cuidar da mente para quando estiver diante de uma catástrofe.
“Todo ano os moradores são obrigados a entrar novamente no carnê das lojas de departamento porque, quando acabam de pagar uma prestação, têm de fazer uma compra novamente, já que a água levou tudo”.
Moro com uma idosa e, além das enchentes, ainda temos as ondas de calor que impactam ainda mais as pessoas mais velhas.
O presente já está sendo muito cruel, precisamos discutir como queremos construir o futuro.”
‘Afeta até nossa espiritualidade’
Hamangai Pataxó Hã-Hã-Hãe, 26, ativista e estudante de medicina veterinária na Bahia
“Sou de um território indígena no sul da Bahia, próximo ao município de Pau Brasil. Cresci perto de um rio, no fundo da minha casa. Comi peixe daquele rio, nadei, brinquei… e em 2015 ele secou por completo, ficou terra pura, por longos dias.
Passamos um sufoco danado para beber água, tomar banho, lavar prato. E ali vi que tinha alguma coisa acontecendo porque não era possível que um rio forte como aquele e que nunca tinha passado por uma seca ficasse assim de repente.
Hamangai Pataxó Hã-Hã-Hãe viu o rio próximo da casa secar completamente
Imagem: Arquivo pessoal
Percebi que muitos territórios também estavam enfrentando coisas parecidas. Vivemos da caça e, com as mudanças no clima, os animais acabam migrando para outros locais —assim como humanos são forçados a mudar.
Antigamente os mais velhos tinham tudo cronometrado e conseguiam prever quando era época da chuva ou da seca, conseguiam se guiar pelo tempo para o cultivo, mas hoje não é mais possível.
“Para nós, a emergência climática tem afetado até nossa espiritualidade. Os rios, por exemplo, são sagrados. Se não há rio, não há morada de encantado, não há morada sagrada.”
Além disso, vejo impactos diretos na nossa saúde. Tenho uma mãe idosa em casa e um pai que sofre com pressão arterial alta e as ondas de calor me preocupam muito.
“Não dá para dizer que todos nós estamos no mesmo barco porque é uma mentira sobre a crise climática. Quem vai sentir de forma mais dura esses impactos não é quem mora em condomínio de luxo, mas quem não tem água encanada em casa e mal consegue ter energia ou saneamento básico. Quem sofre com tudo isso somos nós, povos indígenas e pessoas da periferia”.
Fui à COP-24 [Cúpula do Clima], em 2018, na Polônia e senti um impacto de ver aquelas pessoas falando de algo cujas consequências eu já sentia, mas as falas não condiziam com minha realidade.
Senti que era mais um espaço de divulgar marcas e trabalhos do que de fato firmar compromissos. Falta mais ação e ouvir a juventude, sobretudo a juventude indígena.
O que é ecoansiedade
Área no Caribe que está afundando devido ao aquecimento global
Imagem: Luis Acosta/AFP
Ter episódios de ansiedade é normal —o problema é quando a situação é crônica. A psiquiatra Débora Tseng Chou explica que a ansiedade se torna um distúrbio quando acontece de forma generalizada. Nesses casos, pode impedir uma pessoa de realizar atividades cotidianas.
“A ansiedade se desenvolve como emoções muitas vezes acompanhadas de sensações físicas, com um caráter de antecipar riscos, fazer a pessoa se preparar para o que vai acontecer. Isso é um problema quando gera uma paralisia de todo o resto da vida. A pessoa se sente tão ansiosa que não consegue comer, dormir, trabalhar, fazer amigos, sair de casa, o gera muitos prejuízos”.
Débora Tseng Chou, psiquiatra e pesquisadora no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
A ecoansiedade não é um diagnóstico clínico e a expressão está associada a um termo genérico, criado fora do campo da ciência, para designar uma preocupação da população com o clima. Torna-se uma questão psiquiátrica quando a preocupação é tanta que afeta a vida cotidiana da pessoa.
“Sentir preocupação com a natureza, com as mudanças e interferência humana sobre o ambiente, com a falta de ação dos governos, é algo que faz sentido, já que essas preocupações estão ancoradas na realidade. A grande discussão é: a que ponto isso vai engajar a pessoa em ações que ajudem a mitigar o problema ou o quanto essa ansiedade vai ser totalmente paralisante”.
Débora Tseng Chou
A preocupação com o clima pode, sim, afetar as pessoas de diferentes maneiras. Chou é coautora de um estudo sobre o tema publicado no ano passado na Revista de Psiquiatria Brasileira. A pesquisa procurou entender o nível de preocupação das crianças em relação às mudanças climáticas, entrevistando 50 delas em diferentes regiões e situações socioeconômicas. Uma das conclusões foi que aquelas em situação de vulnerabilidade são as que apresentaram mais ansiedade com eventos climáticos.
“As pessoas que têm menos acesso à informação e vivem sob condição mais vulnerável são justamente as mais atingidas pelas mudanças climáticas. Os eventos climáticos afetam todos nós, de forma diferente”.
Débora Tseng Chou
Acesso à informação, coletividade e políticas públicas são ferramentas para lidar com a ecoansiedade. A pesquisadora explica que, para lidar com a ansiedade de um modo geral, é necessário garantir bom sono, alimentação, lazer e direitos básicos, como moradia e saneamento. Em relação aos danos ambientais, o acesso à informação e o engajamento em atividades coletivas também se tornam essenciais.